Festival de Artes Cênicas de Alagoas – 6ª edição | Fraturas na gira
Ouça essa notícia
|
Imagem – Autor(a) desconhecido(a)
Por Lorenna Rocha
Licenciada em História (UFPE), pesquisadora e crítica cultural
A 5ª Gira do Festival de Artes Cênicas de Alagoas tinha como proposta curatorial investigar e fazer ver as cenas pretas/negras alagoanas. Após várias semanas temáticas, que se desdobraram em discussões acerca das teatralidades queer, da cultura popular, acessibilidade e memória, a programação que deu encerramento ao FESTAL visou criar uma roda para agrupar e celebrar a presença artística negra no estado. O que não se esperava é que, no meio desse contexto “celebrativo”, uma série de fraturas seria exposta, fazendo com que os rodopios dessa gira ganhassem caminhos bem distintos, mas não desconhecidos.
Gostaria de iniciar pelo fim do fim.
No bate-papo que ocorreu no último dia de atividades do FESTAL, participamos eu, Rodôlfo da Silva Aquino, acompanhado de Jadiel Ferreira, Rilton Costa (Cia. Preto Tição de Teatro) e Denis Angola (Cia Urucungo), via Zoom Meetings. Na mediação estava Abides Oliveira. A primeira rodada de fala iniciou-se com comentários acerca dos espetáculos e das apresentações que se somaram durante os quatro dias de atividades.
O rumo da conversa começou a tomar outra direção após um comentário feito por mim, acerca da mesa de abertura da 5ª gira, que contou com a participação da artista Alexandrea e da pesquisadora e artista Daniela Beny. Nessa live, Beny havia afirmado de forma categórica que acreditava que o teatro negro em Alagoas havia começado de dez anos para cá. Ela reforçou seu argumento alegando que “não achava justo” nomear como teatros negros ações, espetáculos e/ou grupos que, ainda que fossem compostos ou protagonizados majoritariamente por corpos negros, não se autodeterminassem como tal. Uma fala que peleja pela “consciência racial”, pelo domínio e integridade do sujeito. Dentro dessa perspectiva restritiva, como quem diz “o teatro começa em mim”, me parecia incoerente deixar o comentário da pesquisadora passar desapercebido na atividade final do FESTAL.
Digo isso porque, ao acompanhar a programação, percebi que entre os espetáculos havia um desejo – muitas vezes expresso, muitas vezes sutil – em revisitar e visibilizar a história e memória do estado a partir de perspectivas pretas, como em seu próprio fazer artístico. Essa vontade motriz também apareceu e se desdobrou na mesa inicial e na fala dos artistas durante o bate-papo que participei, onde deixaram evidente o anseio por construir historiografias possíveis às manifestações culturais e artísticas pretas de Alagoas.
Os entendimentos são infinitos quando nós falamos da categorização do “teatro negro”. Nem quero botar em jogo que “há uma bibliografia vasta” para isso. Mas é importante atentarmos para uma insensibilidade política diante da fala de Beny, que contém uma visão muito estreita sobre as ações, performances e performatividades que, autonomeadas ou não, pulsam e vibram negridades e compõem a trama do que chamamos de teatro, artes cênicas, artes da cena, artes da presença ou o que quer que seja.
O fato de eu ter chamado atenção à afirmação de Daniela Beny, durante o bate-papo de encerramento da 5ª gira, abriu uma caixa de pandora acerca das ausências, desejos e a escassez das políticas públicas destinadas à cena preta de Alagoas. Misturado ao sentimento e às falas de reivindicação, houve ainda um fortuito compartilhamento entre os artistas presentes sobre a existência de manifestações artísticas negras da cidade de Maceió e em suas adjacências, seus movimentos periféricos, as figuras mobilizadoras de várias ações e intervenções artísticas nos bairros, assim como citaram estudiosas que poderiam estar conosco, contribuindo naquele debate que estava se desenrolando. Uma crítica também foi apontada ao FESTAL, no que concerne a sua estrutura e suas escolhas curatoriais.
No texto publicado após a primeira semana do FESTAL, o crítico Diogo Spinelli, do Farofa Crítica, chamou atenção para o formato adotado – a divisão por eixos temáticos – pelo festival, avaliando-o como “uma estratégia de mediação com o público, convidando-o a apreciar as obras pelas lentes do tema de cada uma das giras”. No entanto, a ausência de interseccionalidade nos modos de construção na programação do festival acabou por produzir mais nichos do que ferramentas mediadoras. Isso foi expresso na última mesa por mim e o comentário ganhou ressonância com os companheiros que ocuparam o espaço comigo.
Dentro da gira temática acerca das performatividades pretas, havia um gosto de “vamos dar conta de algo aqui”. O desenho curatorial e a mediação para viabilizar a construção coletiva do pensamento crítico e dos entendimentos acerca das expressões negras parece ter ficado um tanto de lado. Isso se manifestou, inclusive, na forma de condução das vozes do último bate-papo e na falta de espaço para uma conversa que se desdobrasse em proposições e não apenas num diagnóstico ensaiado – dentro da velha chave da representatividade e pulsante na frase “nós precisamos de vocês” emitida pelos organizadores do evento ao fim do debate – sobre o que é fazer ou não teatro preto nas regiões adentro e afora desse país. Essa ausência de caminhos dialógicos se deu, sobretudo, pelo modo como os artistas se posicionaram, sem se sobrepor dentro do Zoom diante da dinâmica de abrir e fechar os microfones, mas com monólogos que se estenderam, rodopiando em si mesmos. E nesse quadro, o silêncio da mediação também impossibilitou a efetivação de trocas.
Como falei no debate, são muitas demandas porque, historicamente, são muitas faltas. Mas, evidentemente, não é um festival ou uma ação de quatro dias que vai dar conta de todos os problemas do teatro negro em Alagoas. Elaborar a curadoria de um festival é, desde sempre, um recorte, uma possibilidade, uma ideia. Pude sentir que houve ali, entre os artistas da última mesa da gira, uma ânsia de também querer dar conta desse algo que não seria resolvido nem em uma hora, nem em quatro. E que talvez nunca seja. Assim, tornou-se frágil e desconfortável habitar um espaço que, menos do que dialógico, se edificou como uma estranha lavagem de roupa suja.
Apesar das questões e poéticas dos espetáculos que compuseram a programação da 5ª gira do FESTAL apontassem para lugares bem distintos, o que, de certa forma, reforça a pluralidade do fazer teatral preto na cena alagoana, eles pareciam se encontrar no desejo de tornar visível as marcas das negruras no estado e em seu fazer artístico: Corpo Saravá se espalha pelo cenário urbano com sua dança e ancestralidade-religiosidade que parte do mangue; Ao meu corpo busca as ruas e chega até as águas do litoral alagoano para reencontrar a própria negridade; Rala Fora Playboy nos lembra da Serra da Barriga, Zumbi dos Palmares e da vontade preta pela fuga. Esses gestos sinalizam para uma territorialidade onde a cultura preta e indígena toma forma, ritmo e cheiro na beira da praia, nas grotas, nas comunidades das águas, nos interiores, praças e perto das linhas ferroviárias. Nesse pequeniníssimo recorte, se deixa expressa a vontade de localizar, geografar, cartografar essas manifestações artísticas que, no passado e no presente, existem.
A promessa da autoconsciência do tornar-se sujeito e preto não deveria ser parâmetro para nos deixar fazer ver, sentir e reconhecer as presenças, grupos, artistas e coletivos pretos. A fratura nessa gira nos engaja a ir atrás dessas histórias, memórias e espetacularidades que, ainda que não estejam escritas, registradas e sistematizadas de maneira volumosa, como foi mencionado diversas vezes durante os debates, desde já compõem as cartografias das criações pretas no estado de Alagoas. Cartografias essas que muitas vezes estão preservadas pelas oralidades, compartilhadas através dos corpos-arquivos. Algo que exige muito treino nos sentidos para a gente se aproximar.