Hackers do Cistema | Crítica – O Evangelho Segundo Vera Cruz

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Imagem – Divulgação
Por Ligia Ribeiro Ferreira
Durante o momento mais rigoroso da pandemia da COVID-19, acompanhei, enquanto espectadora, o processo de criação de O Evangelho Segundo Vera Cruz, do Teatro de Fronteira (PE). O espetáculo foi montado e exibido no formato online entre 2020 e 2021. Algum tempo depois, o reencontrei na oficina Outros Olhares, Outras Escritas. Ambientada na cidade ficcional Vera Cruz, a montagem revisita um episódio de censura ocorrido no Festival de Inverno de Garanhuns (FIG), em 2018, quando Renata Carvalho teve sua peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu retirada da programação do FIG. Na peça, projeta-se como seria se Jesus voltasse como travesti, o que gerou diversas manifestações transfóbicas promovidas por civis e setores evangélicos do estado de Pernambuco.
No espetáculo, mescla-se realidade e ficção, ao narrar a chegada da atriz trans “Ela” e as reações de apoio e oposição que sua presença causaram na cidade. Assim como no episódio de 2018, há uma série de disputas para que a peça em que Ela é protagonista aconteça. Neste contexto, o espetáculo denuncia múltiplas situações de censura e transfobia, promovendo, ainda, um fecundo debate acerca da importância de pessoas trans no teatro, com o elenco composto metade de pessoas trans e metade de pessoas cis. Além da personagem Ela, conhecemos um pouco da história de Chico e Joe, um casal que promove a ida da artista até Vera Cruz. De modo menos complexo, aparecem outras figuras da cidade, como o prefeito, o governador, a radialista, os cidadãos, entre outros.
Personagens conservadores, enquanto representações institucionais, como o prefeito, os pastores, entre outros, são apresentados como figuras risíveis e debocháveis. Historicamente, como mostram Bragança (2019) e Trevisan (2018), nós LGBTQIA+, muitas vezes fomos e somos cota da diversidade e da comicidade nos lugares, retratados enquanto figuras rasas e despolitizadas. Mas, dessa vez, são os donos do poder que sao interpretados como histéricos, exagerados, inconsistente. Retratados de modo caricatural, com uma postura passional e exaltada, a forma como reagem às situações em Vera Cruz é risível e exagerada. Sem nome e sem aprofundamento em suas histórias, acontece um tipo de inversão, paródias de arquétipos do cotidiano, denominados pelo diretor Rodrigo Dourado como “personagens-tipo”. São eles, nessa inversão, os silenciados, seja quando insistem em falar “o travesti”, sendo a troca do pronome uma manifestação de transfobia, ou quando insistem em violentar o corpo de Ela com outras palavras. Eles são os interrompidos. Essa estratégia parece criar um ruído nas vozes preconceituosas. Uma espécie de hackeamento daquilo que é enunciado.
A peça também denuncia outros episódios de transfobia, de falas institucionais às práticas mais invisíveis de reproduzi-la. Isso é marcante, por exemplo, na cena entre Chico e Joe, quando o segundo fala sobre o desejo de fazer uma mastectomia, e o companheiro pergunta se não se trata de uma “mutilação”. E Joe responde: “Mutilação é eu não ser tratado como eu me vejo, como eu sou, pelas pessoas, né?!”. Como aponta Letícia Nascimento (2019), as mudanças corporais efetuadas por pessoas cisgêneras não sofrem tais indagações, reservadas para pessoas transgêneras, evocando os discursos sobre ser radical e antinatural. Os CIStemas são tão violentos que, mesmo através de um interesse genuíno em cuidar, pessoas cisgêneras seguem violentando pessoas trans, travestis, não-bináries, num nível estrutural, coletivo e pessoal.
A figura do hacker parece interessante para pensar as relações de gênero traçada pelo próprio espetáculo: nós, dissidentes, somos, à nossa maneira, hackers desse SIS e CIStema, construindo possibilidades que não nos foram dadas nem oferecidas, mas criadas com muito suor e sangue. Conhecemos as violências que são promovidas por meio do discurso na sociedade em que vivemos, pelos “cidadãos de bem”. Mas, no espaço-tempo da peça, podemos experimentar um lugar em que as dissidentes, as travestis, são quem ocupam centralidade, reivindicando espaço também no teatro. A presença e a fala dos artistas trans e travestis em O Evangelho Segundo Vera Cruz, ecoam o manifesto escrito por Renata Carvalho. E questionam: “Quantas artistas trans e travestis eu conheço, apoio e valorizo? Quantas artistas trans eu já vi no Teatro? Quantos personagens trans foram vividos por nós, pessoas cisgêneras?”. É preciso seguir confrontando o status quo, para que outros teatros sejam possíveis.