Crítica – O Pedido | O absurdo da crise migratória no Ocidente
Imagem – John Hunter
Por Bruno Siqueira
Professor da Licenciatura de Teatro (UFPE)
Os trânsitos migratórios, tão discutidos – quando não celebrados – pelos teóricos da globalização ocidental, foram se mostrando, aos poucos, um problema de difícil resolução, sobretudo, depois da última crise do capital, de 2008, de cujos escombros os países periféricos ainda não emergiram nem se reestruturaram. No entanto, antes mesmo disso, os principais países ocidentais de passado imperialista, como Grã-Bretanha, França, Portugal, Alemanha, Bélgica, Itália, Espanha, Áustria-Hungria, Países Baixos, Dinamarca, Suécia e Noruega, Turquia e EUA, começaram a enfrentar o que para eles configurou um grande problema de ordem econômica, política e cultural: a migração dos povos colonizados para os países que os colonizaram.
De 2008 para cá, o mundo está vivendo uma de suas maiores crises migratórias, desde a Segunda Guerra Mundial, e as potências econômicas ocidentais têm estabelecido políticas severas de cerceamento da entrada de migrantes dentro de seus territórios. A resposta de muitos governos é carregada de racismo e xenofobia, com um discurso que defende medidas extremas, que vão de prisão à deportação dos migrantes. O caso da migração massiva dos sírios para os países europeus, por exemplo, provocou comoção mundial. Os países que lideram os fluxos migratórios no sistema global são os que mais são atingidos pela miséria e pelas guerras civis, como os da África e do Oriente Médio.
Esse contexto mundial contribuiu para que o dramaturgo inglês, Tim Cowbury, junto com o diretor Mark Maughan, refletissem sobre os casos absurdos envolvendo refugiados que pedem asilo político ao Ministério do Interior britânico. Desde o ano de 2015, eles começaram a pesquisar documentos de processos dessas pessoas que pleiteavam sua permanência em solo inglês, ao mesmo tempo em que realizaram uma série de entrevistas a essas mesmas pessoas e a outros tantos imigrantes ilegais ou de situação migratória ainda não resolvida.
Também consultaram importantes organizações como Detention Action, Right to Remain, Refugee Council, GRAMnet, Counterpoints Arts and Freedom From Torture (Ação de Detenção, Direito de Permanência, Conselho de Refugiados, GRAMnet, Artes de Contraponto e Liberdade de Tortura), nas quais puderam ouvir relatos e compartilhar pontos de vista fecundos, emocionantes e disparadores de grandes reflexões sobre o sistema de asilo político.
O resultado de todo esse material foi a peça O Pedido (The Claim), escrita por Cowbury e dirigida por Maughan. O espetáculo estreou no Reino Unido em 2018 e veio ao Brasil, neste ano, para participar da 7ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Trata-se de um teatro de texto, ou seja, o texto constitui a centralidade do espetáculo, sua força-motriz. O cenário é simples e funcional, constituído por quatro colunas de luz circunscrevendo o espaço de um quadrado, no centro do qual encontrava-se um octógono tridimensional, de onde emanava uma luz amarela nos momentos em que a personagem interrogada se sentava nele.
O texto é um drama absurdo e muito inteligente. Serge, imigrante congolês em solo inglês, é interrogado primeiramente por um e seguidamente por outro oficial de imigração britânico. Se no início o tom da conversa é amistoso, com o desenvolver do drama passa a se tornar tenso, por um problema de incomunicabilidade: os oficiais entendem cada vez menos o que Serge está falando. A peça acaba com Serge angustiado e desesperado, sem ter o seu processo de asilo político resolvido. O arco do drama volta a seu estado inicial e a personagem continuou na mesma situação: ilegal.
A peça nos faz refletir sobre questões políticas e culturais urgentes e de extrema necessidade. Como lidamos com a alteridade? Quais as representações sociais que os ingleses fazem dos negros africanos ou dos árabes? As instituições que controlam os fluxos migratórios no Reino Unido são claras em seu regimento, em suas metodologias de ação, nos seus ritos processuais? Qual o papel da burocracia na mediação entre migrantes e nações acolhedoras?
Como o texto de Cowbury nos faz ver, todos esses questionamentos têm suas respostas dificultadas, porque falta aos personagens um fator fundamental para as negociações: o entendimento da língua. O absurdo da situação está justamente no fato de que Serge fala um inglês plenamente compreensível, ainda que com sotaque de estrangeiro; trata-se da mesma língua que os oficiais estão falando, mas ele não se faz entender por aqueles. A passagem mais absurda, já seguindo para o final da peça, é quando a segundo oficial, sem compreender o que Serge estava falando, solicita ao primeiro oficial que traduza a fala do imigrante. O texto que Serge passa a falar é repetido ipsis litteris pelo primeiro oficial: só assim a segunda oficial passa a entender o que se estar a dizer.
As perguntas feitas ao Serge são idiotas, ao ponto de pedirem para que ele falasse sobre a vida selvagem no Congo. Esse, profundamente angustiado, querendo convencer os dois oficiais da sua necessidade de permanecer no Reino Unido, é obrigado a falar sobre gorilas e elefantes, assuntos que são compreendidos pelos oficiais e os satisfazem, mas não os convencem sobre o porquê de Serge querer morar no Reino Unido. Há um momento em que o Serge, desolado, olha para um dos oficiais e desabafa: minha história é a história errada para vocês.
Como me fez lembrar minha parceira Lorenna Rocha, em conversa ao final do espetáculo do Mark Maughan, vimos como esse texto do Cowbury dialoga muito com a peça escrita por Grace Passô, em 2012, chamada Congresso Internacional do Medo. Nela, pessoas provenientes de diversos lugares e de diversas culturas se reúnem para debater temas pertinentes à humanidade e à natureza. Tanto num texto quanto noutro, a ética é posta em questão, na medida em que oferecer sua língua a um outro, o tradutor, envolve confiança e, ao mesmo tempo, a aceitação do risco de não ser compreendido ou de ter sua fala desvirtuada.
O Pedido faz uma crítica contundente à forma racista como os ingleses tratam os imigrantes de países periféricos, enredando-os numa malha burocrática de difícil saída. A situação posta em cena revela um racismo pleno de sadismo, o que é flagrante no diálogo final entre Serge e o primeiro oficial. Ao ter sua pergunta não compreendida, Serge diz ao oficial que esse não o havia escutado, ao que o oficial simplesmente responde: “Mas esse é meu trabalho”. Curiosamente, o texto termina por chamar atenção para o fato de que não é o negro imigrante, mas os brancos (os oficiais) que são pouco inteligentes.