“Somos todos negros…” – Entrevista – O Poste
“Somos todos negros, temos origens idênticas e histórias que nos completam…”
Um dos grupos em maior atuação no teatro pernambucano nos últimos anos, o grupo O Poste Soluções Luminosas, capitaneado por Samuel Santos, Naná Sodré e Agrinez Melo, destacou-se em 2014 por ser um dos grupos teatrais a criar seu próprio espaço – voltado para ensaios, temporadas, cursos, workshops e outras atividades.
Esta forma de resistência cultural e ocupação da cidade pela arte teatro motivou o convite do Magiluth à participação do grupo na programação do TREMA! Festival, em que Naná entrega seu monólogo A Receita (confira o teaser AQUI), dirigida por Samuel.
Confira como foi a entrevista que o Quarta Parede realizou com Samuel.
Entrevista – Márcio Andrade | Imagens – Divulgação
O Poste é um grupo relativamente recente e mostra uma transição pessoal de você, Samuel, que parte de espetáculos infanto-juvenis para outros mais voltados para a “africanidade”. O que motivou essa transição?
O grupo O Poste Soluções Luminosas nem é tão recente assim: ele surgiu em 2004 e tinha sido criado para assessorar, criar e montar iluminação cênica para as produções teatrais da cidade. Em 2008, o grupo muda de perfil e começa a montar seus próprios espetáculos.
Quanto à minha trajetória, na realidade, comecei a dirigir ao mesmo tempo uma peça para crianças – A Terra dos Meninos Pelados – e outra para adultos – Não feche os olhos esta noite. Este é um equilíbrio que será comum durante toda a minha carreira, como os infantis O Amor do Galo pela Galinha D’Água e Historinhas de Dentro e os adultos A Cantora Careca, Bom Samaritano, Auto da Barca dos Mundos, G’Daubach…
Mas, em 2008/09, quando dirigi Cordel do Amor Sem Fim, o foco minhas criações volta-se bem mais para o público adulto, com um espetáculo que define a minha poética em termos de construção cênica. Entrar no grupo O Poste veio num momento importante: foi como se eu encontrasse a minha tribo. Eu vinha de dois grupos muito novos e com realidades diferentes da minha. Foi muito boa a vivência com eles, mas ter entrado n’O Poste foi ancestral. Somos todos negros, temos origens idênticas e histórias que nos completam. Naturalmente, a nossa ancestralidade/africanidade influenciou a construção de nossos trabalhos.
O tema do TREMA! Festival, este ano, trata de ocupação e resistência na cidade. Como O Poste lida com isso no cotidiano da criação de um espaço próprio como resposta ao sucateamento dos teatros da cidade?
Independente de ser uma resposta a este sucateamento, tínhamos a necessidade de um espaço nosso para fazermos os treinamentos e as pesquisas. O grupo vinha discutindo esse objetivo: ter um espaço que fosse gerenciado por e para nós, o espaço O Poste. Víamos o afunilamento dos espaços públicos e dissemos “é agora ou nunca”. Possibilitar para que um grupo tenha o seu espaço é sinônimo de ter um pensamento em relação ao teatro. Continuidade e esmero com o seu trabalho.
Como vocês percebem esta pesquisa da ancestralidade em diálogo com uma contemporaneidade cada vez mais permeada pelos aparatos tecnológicos?
O próprio alemão Bertold Brecht, na década de 30, já utilizava recursos tecnológicos para sedimentar a sua poética e fornecer informações para os espectadores – usava gráficos estatísticos, letreiros, fotografias, documentos, noticiários e trechos de filmes.
O nosso teatro é mais fincado na terra, nos elementos, no lúdico e telúrico, nas percepções orgânicas e espirituais. Buscamos mais o sentido da antropologia teatral, do comportamento humano artístico e social com referências na religião de matriz africana, teatro físico e num pesado trabalho do ator com preocupações com a voz e o corpo. Percebo, por vezes, que o teatro desenvolvido por esse nosso segmento teatral parece um pouco estranho e grotesco num primeiro olhar… Como se não fôssemos desse planeta. Quando comparo com o pós-dramático e a freqüente utilização de recursos tecnológicos, às vezes, me pergunto se o que fazemos comunica com o público, diante de tantos pós- dramatismos.
Hoje, a resposta que tenho é que o teatro que desenvolvemos está dentro da contemporaneidade, mesmo sem o uso de aparatos tecnológicos. O que acontece e que a contemporaneidade é o fazer nesse exato momento, mesmo que, às vezes, você utilize, na encenação, elementos já consagrados de séculos passados ou elementos da atualidade. E para a plateia isso é muito bom, pois aumenta a soma e multiplica as opções da fruição artística.
Sobre “A Receita” e as aproximações entre o feminino e a violência, como estas questões viraram um tema para vocês?
A partir do cotidiano e das memórias da minha infância, pois, quando criança, tinha uma vizinha que apanhava à noite do marido e, na manhã seguinte, andava nas ruas como se nada tivesse acontecido. Éramos orientados a não nos envolver na briga dos vizinhos, mas ficava bastante impactado quando via a minha vizinha pela manhã indo realizar suas compras de óculos escuros, após uma noite violenta. E A Receita foi um espetáculo construído ancorado nesse sentimento de impotência e no visível abandono vivenciado pelas mulheres em situação de violência, mulheres localizadas em várias partes do globo.
O Poste, além da pesquisa e produção de grupo, enfatiza também a formação através de cursos e workshops. Como os processos formativos retroalimentam na pesquisa de vocês?
De forma muito positiva, pois trabalhamos na formação desde o nosso processo inicial de profissionalização e agora, como grupo, essas práticas só reforçam a possibilidade de um maior número de pessoas sentirem a vivência da nossa poética e da nossa estética com a possibilidade de contribuirmos com a formação dos atores da cidade do Recife.