Crítica – Frequência 20.20, Tudo que coube numa VHS & A arte de encarar o medo | O que tem sido possível fazer nesse aqui-e-agora?

Imagem – Divulgação
Por Lorenna Rocha
Licencianda em História (UFPE), pesquisadora e crítica cultural
A experiência de confinamento, ocasionada pela pandemia da covid-19, tem mudado paulatinamente nossas formas de socialização e sensibilização. Atravessadas por corpos, vidas, números, estatísticas e conflitos político-ideológicos, artistas e trabalhadoras da cultura buscam caminhos para dar continuidade ao fazer artístico.
Manter os grupos reunidos, os espaços abertos, mesmo com suas atividades suspensas, ou conseguir o sustento da semana e do mês são desafios que permeiam a realidade de boa parte da classe artística, num momento em que a presença física não é possível, os editais não dão conta do volume de projetos existentes e as batalhas por políticas públicas para o campo da cultura se acirram gradativamente.
No meio disso tudo, estamos tateando como ainda é possível fazer teatro. O que se produzir teatralmente, enquanto a questão da presença torna-se uma grande problemática? Como se estabelece a relação entre artista-espectador por meio do campo virtual? Como produzir afetações diante do distanciamento dos corpos? Como despertar experiências sensoriais enquanto somos mediados pelas telas?
Esse é um período de emergências, insurgências, rupturas, destruição e desaparecimentos. Numa situação em que somos confrontados com incertezas, convoquemos menos respostas e mais questionamentos. Entender não parece ser um bom verbo para ser usado aqui. Apesar de esse ser um breve esforço de tentar “nomear” uma série de possibilidades no campo teatral, que vem se construindo durante o isolamento social, abrir mão da racionalidade cartesiana, ao menos parcialmente, parece ser um bom gesto. Experienciar, tatear, utilizar-se de outros sentidos, ao ponto de embaralhá-los, pode ser uma boa maneira de iniciar essa travessia.
Esse clima de instabilidade também se manifesta na escrita da crítica. Aqui, modulo enquanto pergunta uma frase de Amilton de Azevedo em seu texto “Da emergência dos possíveis” (ver AQUI): como é possível debruçar um olhar analítico sobre obras cuja própria nomenclatura está em jogo? Se falamos, então, sobre arquivos de teatro, que não é o foco desse texto, podemos levantar uma outra questão: como escrever sobre espetáculos e performances os quais não vi pessoalmente?
A crítica teatral aparece como um caminho para fomentação de debates acerca deste teatro contemporâneo, que não é exatamente novo, mas está em intensa erupção. Tendo isso em vista, a escrita crítica passa a operar dentro de um campo de produção de conhecimentos ainda mais aberto, plural e descontínuo. Isso se dá, não apenas pelas modificações produzidas pela conjuntura pandêmica, mas também pela polifonia que o próprio campo da crítica tem experimentado. Além de serem documentos históricos importantes, esses escritos em processo podem nos auxiliar a nos aproximarmos dessas obras, promover o estabelecimento de diálogos e de mediações.
Depois de ter passado um período revisitando peças daquele mundo que já deixou de existir e conhecendo obras que só foi possível vivenciar pelas plataformas digitais, lancei-me nas experiências de teatro online/teatro digital/teatro virtual. Meu olhar aqui, já deixo explícito, é um olhar em construção.
No entanto, algo me parece posto: se queremos chegar mais perto dos teatros expandidos, precisamos revisitar nossas noções de experiência e de espectatorialidade. Mais ainda: precisamos nos dissociar de nossas visões essencialistas sobre a linguagem teatral. O que seria mesmo o “verdadeiro teatro”? Outra urgência: precisamos reformular nossas perguntas.
O teatro online/teatro digital/teatro virtual parece ser um convite à imaginação, na mesma medida que produz um tônus de saudade daqueles encontros produzidos por um passado que já parece muito distante de nós. Demanda, talvez, um certo desapego por esses registros anteriores, ao mesmo tempo que somos alimentados por eles. Há uma certa busca pelo diálogo cada vez mais estreito com outras linguagens, como o teatro sempre o fez, mas agora intensificado e mediado pela tela quase como uma máxima.
Nesses territórios amplos e de incertezas, lanço meu olhar para três obras recentes produzidas no contexto de distanciamento social e geográfico: Frequência 20.20, de Grace Passô (MG), Experimento sensorial em confinamento – Tudo que coube numa VHS, do Grupo Magiluth (PE) e A arte de encarar o medo, da Companhia Os Satyros (SP).
Traço esse breve panorama como modo de estabelecer diálogos entre as obras, apontar a diversidade de formatos dessas experiências teatrais, além de produzir gestos críticos em torno de suas questões políticas, estéticas e/ou poéticas. Nesses trabalhos, é possível perceber múltiplos tons de experimentação, assim como certa urgência de falar sobre o presente: algumas vezes de forma mais explícita, outras recorrendo a imagens e temáticas de outras temporalidades.
Ai que saudade de um palco, né, minha filha?
O som do terceiro toque no canal Sesc São Paulo[1], no Youtube, anuncia o início da apresentação da performance Frequência 20.20, realizada ao vivo pela atriz, dramaturga e diretora Grace Passô, a qual foi compartilhada via streaming. O cenário revelado pela câmera parada, em plano médio, nos direciona a um cômodo que se transformou numa rádio.
Ao som da batida do brega funk, a voz da performer-locutora evoca memórias da experiência teatral de um mundo que já se foi: ai que saudade de um palco, né, minha filha?. Da coxia à platéia vazia, as frases remetem a fragmentos da vivência do teatro, que se materializam a partir de fotografias de alguns espetáculos encenados e escritos por Passô. A performer posiciona as imagens em frente aos seus olhos em um gesto de amplificação e projeção imagética de suas próprias experiências, como modo de deixar a ver seus registros memoriais, em formas e cores, para o público.
Na tentativa de mediar seu próprio experimento, reflexões sobre o teatro e os procedimentos performativos são enunciados por Passô. Se o teatro, aquele velho teatro da fila, do palco e da coxia, não se faz possível por agora, é a frequência, a sua potência energética, o seu poder de movimentar aquilo que não é visível, que o faz permanecer vivo. A performer utiliza-se de amplificadores para potencializar as vocalizações de suas falas, que engrandece o espaço no qual acontece a apresentação, produzindo ondas sonoras que tem como destino as espectadoras do outro lado da tela, onde quer que elas estejam.
Dividida em três partes, a performance reúne fragmentos das dramaturgias de PRETO, Mata Teu Pai e Por Elise. Antes de cada uma dessas etapas, Passô convidou artistas que estiveram envolvidos nas peças mencionadas por meio de ligações telefônicas. A conexão sonora possibilitou o encontro entre subjetividades e afetos, por meio do compartilhamento de memórias dos convidados. Os relatos de momentos importantes de temporadas passadas, das encenações ou do processo criativo formatam uma espécie de documento teatral, como mencionado pela própria Grace durante a performance, uma vez que tais memórias adicionam uma camada documental, ou seja, de registro e de produção de narrativa, que, poeticamente, causa efeito de rememoração e evocação de tempos que já se foram.
Experimento multimídia
Se em Frequência 20.20 a presença é convocada por meio das vocalizações e sonoridades, o Grupo Magiluth (PE) tenta buscá-la no um-a-um e em contatos múltiplos, os quais são mediados por ligação telefônica, Whatsapp, Youtube, Spotify e por e-mail. Com duração de cerca de 30 minutos, a espectadora se encontra com um dos atores do grupo para o que eles chamaram de experimento sensorial em confinamento, intitulado Tudo que coube numa VHS.
O diálogo e a interatividade com o público já é uma marca do grupo pernambucano, como nos espetáculos Aquilo que meu olhar guardou para você e Dinamarca. A tentativa de reconfigurar as rotas, traduzir o aqui-e-agora diante da impossibilidade do contato físico, fez com que o palco se transferisse para as plataformas digitais e mídias sociais, as quais se transformaram num terreno possível para criar zonas de contato junto ao seu público: uma maneira de estar junto, mesmo de longe.
O experimento conta a história de amor de um casal, configurado por dois homens, a qual, já de início, sabemos como terminará aquilo que está sendo contado. O compartilhamento das memórias produzidas pelos dois, seja por fotos ou áudios de Whatsapp, ou pela reencenação de momentos compartilhados entre eles, possibilitam o acesso a esse relacionamento que confere um tom excessivamente melodramático, embalado por músicas demasiadamente românticas, o qual aparenta ser uma espécie de hipérbole para a permanente sensação de brevidade ocasionada pela nossa conjuntura pandêmica. Sem grandes articulações quanto ao seu texto dramático, parece ser justamente as afetividades produzidas por esses múltiplos produtos digitais, atreladas a essa pequena história de encontro e de perda, que cativam o seu público.
O estado de conexão, e da possibilidade de criação de algum tipo de rede, foi um fenômeno produzido também pós-espetáculo, onde o público, por meio do Instagram do Grupo Magiluth, tem frequentemente deixado seus relatos, em vídeos via stories, sobre como foi ter vivenciado essa experiência sensorial. A reverberação do encontro, entre público-obra-artistas e público-público, também parece ser um ponto importante para visualizar a recepção desta obra.
Com o grande volume de compartilhamentos, a procura pelo experimento fez com que o Magiluth aumentasse o número de suas apresentações. Esse fenômeno produzido pela Internet pode nos ajudar a pensar em possibilidades de ampliação de um público que, diferente do passado recente, não precisa se deslocar ao teatro para ter uma experiência cênica. Como a formação dessas redes podem fortalecer nossos trabalhos? Como isso pode remodelar nossas estratégias de diálogo com nossos espectadores? Como dimensionar, a partir de agora, a amplitude de nossas obras?
Esse diálogo através do Instagram já é algo que vem sendo construído pelo grupo pernambucano muito antes desse contexto de pandemia. A criação de uma relação próxima com as(os) espectadoras(es) e de uma produção imagética a partir de peças digitais e de mídias em vídeo, além de publicizar seus trabalhos, estabelecem conexões que reverberam no acolhimento da proposta de Tudo que cabe em um VHS. Apesar de boa parte dos grupos teatrais não contarem com a mesma estrutura que o grupo parece ter para a manutenção de suas redes, aparentemente esse é um projeto de mídia social importante para pensarmos nossa relação com o público.
O uso das tecnologias como aliadas
Diferentemente de Frequência 20.20 e Tudo que coube numa VHS, a peça de teatro online da Companhia Os Satyros (SP) tem como palco virtual a Plataforma Zoom. No início da atividade, dois atores instruem o público para a utilização da plataforma.
Todos nós passamos a ter funções dentro desse espaço: se os atores e atrizes, do lado de lá, tem que dar conta do texto, da sonoplastia, da troca de figurino e da iluminação, do lado de cá, desligamos nossas luzes, nossas câmeras e microfones e utilizamos o chat apenas quando solicitado pelo elenco. A ausência das barreiras geográficas, oferecida pela Internet, possibilita que, entre os 17 atores e atrizes em cena, tenha a presença da atriz sueca Ulrika Malmgren no espetáculo, mesmo ela residindo em Estocolmo.
Após 5.555 dias de isolamento social, a peça está no ano de 2035. Nesse ambiente distópico, é possível falar sobre passado e presente, sobre configurações da política nacional brasileira e dos sufocamentos diários promovidos pela inacabada crise sanitária. Apesar de estar ambientada quinze anos à frente de 2020, a montagem imprime diversas questões que nos assombram agora, além de projetar algum tipo de esperança para nosso futuro.
Se, em 2014, Os Satyros produziu uma série de espetáculos intitulada E se fez a humanidade em 7 dias, que abordou as relações da humanidade com a tecnologia, no contexto da pandemia mundial, esse diálogo se estreita e torna-se parte operacional de algo que já vem sendo experimentado de múltiplas formas pelo grupo em sua trajetória de mais de trinta anos. Mesmo na Plataforma Zoom, a experiência criada pela companhia paulistana transfere os códigos da linguagem teatral, unida à cinematográfica, para correr os velhos riscos com que nos deparamos quando nos lançamos no palco.
A ficção, que tem certa dimensão performativa, com núcleos narrativos fragmentados que se apresentam em sequências distintas, usa a câmera como aparato de se fazer ver ambientes e encenações, mas também como componente da subjetividade de alguns dos atores e atrizes. O uso das ferramentas do Zoom, como a mudança do background, e o uso do Chroma Key possibilitam a construção de cenários dentro desse ambiente virtual. Algumas cenas possuem elementos de um formato ainda emergente no cinema intitulado screenlife[2], em que a perspectiva de estar de frente para a tela, em situações cotidianas, é totalmente assumida. Isso acontece em alguns momentos, como aquele em que se realiza uma festa de aniversário por videochamada e durante a cena em que uma criança está jogando games online.
Quando a câmera se torna o olhar daquele que vê, ela passa a ser empunhada pelos atores para que o espectador tenha a experiência em primeira pessoa daquilo que está ocorrendo, ferramenta que já foi incorporada em diversas peças de teatro contemporâneo. Entretanto, enquanto espectadora mediada exclusivamente pela tela, esse recurso tecnológico amplifica o efeito da intersecção entre as linguagens, aumentando os contornos dos pequenos gestos de experimentação propostos pela companhia.
Boa parte das cenas ocorrem frontalmente à câmera. Em seu discurso cênico, elas buscam retratam as aflições de um mundo em que estabelecer contato com o que está fora de nossas casas está impossibilitado. Além disso, se posicionam criticamente em relação à ascensão do autoritarismo e do fascismo no Brasil, com personagens que usa camisas verde e amarela, na mesma proporção que hasteiam a bandeira dos Estados Unidos e com outras que vibram com imagens da Klu Klux Klan. Nesse sentido, o futurismo de A arte de encarar o medo torna-se plano de fundo para fazer uma crítica direta ao momento político em que estamos imersos, frente às tensões político-ideológicas que nos colapsam.
As narrativas escolhidas para a construção cênica, imersas nas vivências de pessoas que, sob diferentes condições e privilégios, estão cumprindo o isolamento social, me atentam para um questionamento. Se, por um lado, essa seja a tradução de um esforço de produzir reflexões – e interpelações críticas – sobre boa parte da classe média do país, sobretudo a ala mais conservadora, fico me perguntando quais imagens seriam possíveis para aquelas pessoas que teriam que encarar esse mundo distópico do lado de fora. Que, me parece, são as mesmas que o estão fazendo nesse agora.
Mesmo após o atravessamento de tantos sufocamentos e medos, o fim da peça se dá com a marchinha de carnaval As Águas Vão Rolar, onde se inicia uma festa carnavalesca por videochamada, mais uma vez utilizando-se de elementos do formato screenlife. Há uma tentativa de construir imagens menos pessimistas sobre aquilo que está por vir.
Como num rito, os atores e atrizes performam seus corpos para a câmera, entreolham-se por meio das telas e expressam um olhar de cumplicidade com um público que ainda nem é possível ver, até que se chegue o momento em que entendemos que é possível ativarmos nossas câmeras e nos livrarmos da mudez de nossos microfones para aplaudirmos a obra. Aqui, aquela potência energética convocada por Grace Passô, em Frequência 20.20, parece dizer: o teatro, apesar de tudo, está vivo.
Por abismos ou Por um campo aberto e rizomático para o teatro
Há três meses, estamos tentando recalcular nossas rotas. Com o teatro não seria diferente. Esse breve passeio por experiências tão diferentes, de iniciativas de grupos e artistas com trajetórias, localizações geográficas e escolhas estéticas e políticas tão distintas, só reforça o meu argumento do início desse texto: independente do que o teatro virá (ou não) ser, é preciso desautomatizar e dessencializar nossos olhares. Menos busca por uma essência do teatro, mais abertura para as energias, ondas, deslocamentos que ele, na verdade, eles, os teatros, podem provocar. Seus formatos já são múltiplos há séculos.
Concordo com Daniele Avila Small quando ela diz que nem tudo na Internet é dispersão e superficialidade[3]. Pelo contrário, a multiplicidade de seus usos, a possibilidade parcial de democratização dos acessos e os canais de comunicação e interatividade com o público aparecem de formas diferentes nas três experiências analisadas aqui. Elas nos mostram que, antes de enclausurarmos ou taxarmos esses processos, precisamos nos lançar nesses abismos e nos reformular, expandir e nos convidar a, no mínimo, se deixar transpassar por essas (não tão) novas experiências.
Notas de Rodapé
[1] O projeto #EmCasaComSesc está promovendo uma série de espetáculos, apresentações musicais e de dança, dentro da plataforma Youtube. Artistas como Jé Oliveira, Jhonny Salaberg, Matheus Nachtergaele, entre outros, tiveram apresentações via streaming que ficam salvas em vídeo e podem ser acessadas posteriormente. Para conferir, acesse o canal Sesc São Paulo.
[2] Para ver mais, acesse: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/06/12/O-que-%C3%A9-o-screenlife-alternativa-para-produzir-filmes-na-pandemia
[3] Daniele Avila Small é crítica, diretora e pesquisadora. No Questão de Crítica, produziu um texto crítico sobre “Doze pessoas com raiva”, onde refletiu também sobre teatro expandido. Para saber mais, acesse: http://www.questaodecritica.com.br/2020/06/12-pessoas-com-raiva/