#02 Arte para Tod_s? | A audiodescrição e o teatro – A palavra no entrelugar da cena
Por Jefferson Fernandes
Doutor em Educação e Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação (UFRN)
Os diversos estudos e iniciativas em torno da audiodescrição (AD) já comprovaram a contribuição comunicacional e educativa desta modalidade de tradução intersemiótica para a participação das pessoas com deficiência visual nas diversas formas de fruição de práticas e objetos artísticos e culturais, incluindo o teatro. Além disso, com maior ou menor contundência, apontam para a necessidade da ampliação dos índices de acessibilidade comunicacional das diversas esferas da convivência humana, como forma de atender aos direitos culturais deste segmento social.
Embora tais enfoques sejam importantes e necessários, nos limites deste ensaio, procuraremos abordar a relação entre a audiodescrição e a arte teatral na perspectiva de refletir sobre como a AD fricciona o próprio espetáculo teatral e de como essa palavra que, ao manifestar um esforço em se agregar à cena como movimento tradutório, ajuda-nos a pensar sobre as formas como ela se manifesta (ou poderia se manifestar) esteticamente ao considerar a própria linguagem teatral.
Assim, a nossa tentativa de pensar a relação entre audiodescrição e teatro parte da ideia de que a palavra que é acionada como matéria semiótica e que dá substância ao caráter tradutório da audiodescrição não apenas se situa entre as falas das personagens da peça teatral, mas é instauradora de um entrelugar determinado gerador de diversas nuances que procuraremos assinalar, mesmo que sucintamente.
Se considerarmos que todo signo remete a outros signos, verificaremos que essa dimensão relacional importa na constituição do entrelugar como próprio da natureza sígnica, instauradora de cadeias ou redes semióticas. Assim temos, relacionalmente, signos respondendo a outros signos, em uma malha infinitamente tecida pelos processos humanos de atribuição de sentidos. Essa forma de encarar os signos nos permite entender o caráter tradutório da audiodescrição como um enunciado verbal constituído intencionalmente para responder ao espetáculo teatral, na perspectiva de que o espectador com deficiência visual, por sua vez, possa responder (acionando outros signos) ao espetáculo acessível.
Embora tenhamos esclarecido nossa forma de encarar a audiodescrição, esse enfoque mais abrangente do caráter relacional do signo, não é suficiente para esclarecer o entrelugar determinado que a AD instaura em relação ao teatro. Para isso, é preciso evocar a compreensão do teatro como a arte do encontro. E isso nos remete à ideia de Grotowski que, em uma de suas reflexões, abrigadas no livro Em busca de um teatro pobre, diz-nos, explicitamente, que no teatro podemos estabelecer um contato conosco mesmo, constituindo-se em um confronto com todos os nossos estados, bem como em relação ao outro (o diretor, o texto), de tal forma que nos permita “[…] encontrar o que está escondido dentro de nós e realizar o ato de encontrar os outros: em outras palavras, transcender nossa solidão.”[1].
O enfrentamento da solidão, por conseguinte, é uma das características definidoras do teatro, uma vez que a convivialidade, em articulação com a característica da criação poética e do seu endereçamento para o outro, desencadeia exercícios alteritários de estar com o outro e consigo mesmo, em comunhão coletiva, de tal maneira que as pessoas participam do teatro para olharem e serem olhadas por meio das provocações da cena.
Essa perspectiva da transcendência da solidão, por meio do convívio, nos remete à co-presencialidade inerente à arte teatral que une e distingue atuante e espectador(a), palco e plateia, pondo em evidência a natureza gregária desta arte que se realiza no aqui e agora do acontecimento teatral. Essa dimensão do teatro como evento, por sua vez, nos remete à instauração de um espaço-tempo determinado, o qual vincula-se e, ao mesmo tempo, separa-se do espaço-tempo da realidade, ao construir a realidade fabular da cena. Assim, a representação teatral provoca e se realiza em um outro lugar, uma outra espacialidade (a cênica). Neste caso, teríamos, a grosso modo, um espaço arquitetônico que acolhe a representação teatral (uma rua, um prédio, uma sala, um teatro, etc) e, a partir dele e, também em função dele, o outro espaço instaurado pela fábula cênica.
É preciso assinalar, antes de mais nada, que uma das questões mobilizadoras das investigações da cena contemporânea é justamente a perspectiva de relativizar a distinção entre estes dois lugares e, consequentemente, entre a realidade ficcional da fábula e a realidade social que, geralmente, a inspira. De qualquer maneira, assumimos o enquadramento do teatro como encontro, o qual empreende um exercício fabular que dialoga e que se contrapõe ao real. Assim, o espetáculo teatral como uma realidade determinada instaura um outro lugar, engendrado pela fábula, que se apresenta para o espectador, convidando-o para participar dela.
Se esse convite se coloca como uma possibilidade da instauração de um encontro que engendra a transcendência da solidão, como a pessoa com deficiência visual pode participar deste encontro e exercitar a superação de sua solidão social?
A natureza social desta solidão se apóia no fato de que as diversas esferas de convivência humana são orquestradas esteticamente para engendrar lugares e atividades que são comuns e/ou dirigidas para determinados segmentos ou agrupamentos humanos. Neste caso, o usufruto comum do teatro como um lugar arquitetônico e do próprio espetáculo como um lugar da fábula, não é, usualmente, pensado para as pessoas com deficiência, em particular para aquelas com deficiência visual.
A forte orientação visuocêntrica do teatro faz-nos compreender que esse exercício de transcendência da solidão é pouco extensivo àqueles que não enxergam. Para mudar isso, é preciso alterar a repartição social dos lugares e das atividades não se restringindo, apenas, às adaptações arquitetônicas. É preciso, por conseguinte, considerar outros arranjos semióticos e estéticos que permitam que outras pessoas participem deste encontro.
Se considerarmos, por conseguinte, a participação da pessoa com deficiência visual do convívio cênico, podemos encarar a audiodescrição como a emergência de um determinado arranjo semiótico, nucleado pela palavra, o qual demarcaria um entrelugar, na medida em que se posiciona nas interfaces entre estes dois espaços, o cênico e o real, bem como de dois mundos, de dois regimes perceptivos, a vidência e a não vidência.
Levando em conta que a natureza tradutória da audiodescrição pressupõe um esforço de aderência ao espetáculo teatral, cuja vinculação, nem sempre se dá desde o início do processo criativo, verificaremos que o atravessamento da AD em relação aos espaços mencionados manifesta tensões estéticas provocadoras de reflexões que vão desde o receio da AD rasurar o desenho cênico até à necessidade da superação de sua inclinação técnica em favor de conotações mais poéticas.
De todo modo, a emergência desta palavra e da voz correlata (roteiro e locução da AD), ao se posicionar no “entre” possibilita a expansão do teatro como encontro, como convivialidade, na medida em que colabora com a participação das pessoas com deficiência visual, ampliando o perfil dos espectadores. E isso tem repercussões mais profundas uma vez que a audiodescrição permite a expansão do olhar, contrapondo-se à própria natureza etimológica do teatro como um lugar de onde se vê, apoiada, secularmente, na égide visual como estruturante da relação teatral.
Antes de nos ocuparmos da expansão do olhar, gostaríamos de assinalar que a natureza tradutória da audiodescrição não se presta à reconfiguração mimética da cena por meio da palavra. A tradução de modo geral e a intersemiótica, em particular, opera com processos transcriadores que, no caso do teatro, se ocupa de aspectos preponderantes que se manifestam na visualidade da cena. Esse esforço de correspondência semiótica põe em evidência o fato de que, no encontro teatral, configura-se uma outra nuance de convivialidade, representada pelos eixos culturais da vidência e da não vidência, os quais, muito mais do que pautarem carecimentos sensoriais, expõem formas diversas de experimentarem a semantização das coisas, de tal modo que devemos resistir aos apelos de padronizar as formas de percepção do imagético, a partir da hegemonia da visão.
Isso não significa desconsiderar o papel preponderante das visualidades na estruturação e convivência social. Na verdade, o que está em causa são as diversas possibilidades de apreendê-las e da correlata capacidade de problematizá-las. E isso pressupõe a perspectiva de expansão do olhar, a qual não se reduz apenas ao engendramento de estratégias para que as imagens sejam acessíveis para quem não enxerga. De outra parte, a consideração da perspectiva da leitura das pessoas com deficiência visual, nos múltiplos encontros culturais, incluindo o teatral, permite o diálogo de pontos de vistas, de visões de mundo que podem ser provocadores de outras imagens, de outras leituras que afetem mutuamente os envolvidos na comunhão teatral. Assim, a emergência deste entrelugar pode deflagrar entreimagens reveladoras das marcas relacionais estabelecidas com a cena e com quem as assiste.
Esse acento relacional como gerador de imagens recupera as ideias expostas mais acima sobre o signo e sua existência em redes semióticas. Neste caso, a consideração das formas de apreensão mobilizadas pelas pessoas com deficiência visual põe em evidência as possibilidades de constituição imagética, mediadas por outros registros sensoriais, cuja participação em tais redes semióticas revela uma polaridade não visual que pode ser fértil, inclusive, para ler e se contrapor as formas discursivas das visualidades. Isso nos remete às provocações estéticas e reflexivas do fotógrafo esloveno Evgen Bavcar[2] ao defender a necessidade contemporânea da constituição de um olhar tiresiano que nos permita apreender de outra maneira o mundo que nos cerca, transpondo as diretrizes duais de escuridão/claridade e de vidência/não vidência.
Neste sentido, essa linha de argumento permite-nos esclarecer que a participação das pessoas com deficiência visual no encontro teatral não deve se orientar pela perspectiva da falta ou do carecimento como se a cegueira e/ou a baixa visão instaurassem uma eterna desvantagem social e cultural, restringindo a participação destas pessoas à espaços e convivências que não pressuponham a visualidade como estruturante das relações comunicacionais.
As pessoas, inclusive aquelas com deficiência visual, devem ir ao teatro para se submeterem a uma experiência constituída por meio da simbolização fabular que as afete e que as atravesse na medida em que o exercício de transcendência da solidão ou da convivialidade possa se basear nas múltiplas formas com que a realidade cênica problematiza e interpela a realidade social. Em outros termos, que possamos olhar de outras maneiras o mundo e vislumbrar outras formas de compreendê-lo e agir nele.
Isso implica em exercícios do olhar, os quais podem ser provocados pela audiodescrição, na medida em que se expanda a perspectiva visuocêntrica em favor do acionamento multissensorial do corpo, orientado por uma pedagogia que não se paute na leitura predeterminada e que encare o espectador (com deficiência ou não) como autor de suas próprias narrativas em interlocução com a cena teatral.
Neste caso, a expansão do olhar, provocada pela audiodescrição, está diretamente relacionada à expansão da audibilidade inerente à cena teatral, uma vez que a escuta é um componente estruturante para os espectadores com deficiência visual. É óbvio que os signos que se orientam pelo campo do audível se mostram importantes e necessários para a configuração cênica, de tal maneira que a sonoplastia como uma das tecnologias da cena, mobilizam sonoridades e registros musicais que vão muito além do emolduramento cênico. No entanto, as ações físicas que preponderam na cena e que não são traduzíveis, dentro da própria cena, por determinados registros sonoros, não são apreensíveis pelas pessoas com deficiência visual, por se situarem exclusivamente no campo da visualidade. Assim, a audiodescrição, atuando no reino da audibilidade, pode concorrer para apropriação da cena e de suas marcas de teatralidade.
Essa “intromissão” da audiodescrição nos contextos do audível da cena está diretamente relacionada à própria natureza da teatralidade que se orienta pelo eixo do “mostrar” e não do “dizer”. E isso nos remete à outra nuance da condição assumida pela audiodescrição como geradora de uma palavra que se posiciona no entrelugar da cena, na medida em que ela se situaria, à primeira vista, no eixo do “dizer” a cena.
Para darmos conta desta tensão estética, vamos explicitar algumas ideias do teórico francês Denis Guénoun, contidas em seu livro “A exibição das palavras”[3], que, ao se debruçar sobre a teatralidade, constrói um argumento que posiciona a palavra (o texto teatral) no universo sonoro, cuja invisibilidade seria contraposta pela centralidade do teatro ao mostrar as coisas, ao expô-las à percepção visual. Neste caso, a teatralidade estaria centrada na passagem do invisível ao visível, da palavra à ação cênica, de tal maneira que a visualidade da ação cênica exploraria as impropriedades da palavra, sua incapacidade, de por si só, tornar-se visível.
Acompanhando essa linha de raciocínio, podemos dizer, em contraposição, que a audiodescrição procura acionar uma palavra determinada para explorar as impropriedades das cenas que são mostradas. Melhor dizendo: Guénoun constrói seu argumento assentado no caráter visual do teatro, considerando o espectador vidente. A palavra que emerge no contexto tradutório da audiodescrição dirige-se justamente para o espectador com deficiência visual interpelando a visualidade da cena que, do ponto de vista deste espectador, é inacessível senão pela reabilitação do caráter audível do signo verbal.
Mas o fato da audiodescrição explorar a invisibilidade da palavra não significa desconsiderar o caráter central da “mostração” como inerente à teatralidade. Esse tensionamento é enfrentado por Josélia Neves[4], pesquisadora e audiodescritora portuguesa, ao suscitar incursões no campo da audiodescrição que nos desloque do campo do “dizer” para nos aproximarmos do campo do “mostrar” relacionado à arte teatral. Esse deslocamento é sugerido por intermédio do exercício de uma audiodescrição mais poética que não “diga” a cena, mas que possa contá-la poeticamente, em sintonia com a poética da cena.
Isso pressupõe a investigação da própria audiodescrição, modalidade de tradução relativamente recente, na perspectiva de encontrar maneiras mais poéticas de transcriar, pela palavra, as múltiplas imagens engendradas pelas múltiplas manifestações artísticas, incluindo o teatro. Isso nos conduz ao desafio de transpor os meandros da técnica no contexto da audiodescrição, em favor de explorar suas nuances artísticas como forma de traduzir arte (incluindo a arte teatral) por meio da arte da palavra.
As possibilidades do deslocamento do “dizer” para o “contar” a cena também conduz a processos de deslocamento da própria audiodescrição do entrelugar para a sua inserção na cena como lugar de fabulação. Essas experiências que se manifestam no mundo e no Brasil procuram dilatar a cena teatral por procedimentos estéticos do uso da palavra que ecoam de dentro do próprio espetáculo, reverberando, simultaneamente, nos espectadores com e sem deficiência visual. De modo geral, essa perspectiva se orienta pela consideração da audiodescrição (e de outros procedimentos de acessibilidade) desde o início do processo criativo. Desta maneira, a palavra que “conta” a cena emerge organicamente com a cena, conforme podemos verificar no espetáculo infantil “É proibido Miar”, o qual pode ser visto AQUI.
Encerramos, por agora, nossas reflexões em torno da interface da audiodescrição com o teatro chamando a atenção para a convergência estética da audibilidade e da visibilidade em torno da cena teatral, tendo como referência a provocação de contextos de encontro e de convivência mais amplos, de tal maneira que o sensível e o intelegível possam concorrem para a leitura do espetáculo como forma de revisarmos o olhar que dispensamos para o mundo, para o outro e para nós mesmo.
[1] GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. 4a. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992, p. 42.
[2] BAVCAR, Evgen. Um outro olhar. In: TESSLER, Elida; BANDEIRA, João. Memória do Brasil: Evgen Bavcar. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 135-142.
[3] GUÉNOUN, Denis. A exibição das palavras: uma idéia (política) do teatro. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2003.
[4] NEVES, Josélia. Guia de audiodescrição – imagens que se ouvem. Leiria/Pt: Instituto Nacional de Reabilitação e Instituto Politécnico de Leiria, 2011.