Crítica – Jacy | Jacy e as memórias do lixo
Imagens – Divulgação
Por Rodrigo Carvalho Marques Dourado
Doutor em Artes Cênicas (UFBA) e Professor da Licenciatura em Teatro (UFPE)
O Grupo Carmin, de Natal (RN), afirma que sua intenção inicial, e anterior à gênese do espetáculo Jacy, era a de erguer uma montagem teatral em torno do tema da velhice. A pesquisa já havia se iniciado quando o diretor Henrique Fontes encontrou, por acaso, numa das principais avenidas de Natal, uma frasqueira, jogada ao lixo. Nela, estavam os pertences de alguém, que o grupo viria a descobrir se tratar de Jacy, senhora de 90 anos, tornada, desde então, a principal personagem dessa investigação/criação cênica.
MEMÓRIAS DO LIXO – Eu diria que o espetáculo é, em verdade, uma investigação sobre o lixo. Não que a velhice esteja ausente do trabalho, tampouco uso a figura do lixo como qualificativo denegridor da montagem. Ao contrário, penso que o lixo é a metáfora mais potente articulada pela encenação. Pois, o que seu criador encontrou em meios aos dejetos não foram somente objetos, vestígios materiais de uma vida, mas as próprias memórias-lixo, memórias-resíduo, memórias-detrito, memórias-entulho de uma brasileira, nordestina, idosa, mulher, potiguar, cuja história de vida pouco ou nada interessa à historiografia oficial.
“Nenhum parente acompanhou Jacy até o túmulo”, afirmam os atores ao cerrar a narrativa. Um final sem testemunhas, uma vida que se apagaria no anonimato, dela restando apenas rastros materiais que, se não encontrassem o devido guardião, permaneceriam destinados à lata de lixo. O encontro do Carmin com essa história-memória (re)anima, portanto, a vida de Jacy, sacando-a, simbólica e materialmente, da pilha de dejetos para atribuir-lhe novos significados, não por piedade ou caridade, mas pelo entendimento de que essa trajetória tem muito a dizer sobre nós mesmos, tem muito a nos iluminar.
JACY E NATAL – “Jacy era igualzinha a Natal, uma donzela em busca do príncipe encantado”, aponta, em momento de síntese, a dramaturgia. E é a partir da trajetória desta mulher – já falecida – que acompanhamos um pouco da história de Natal, da história brasileira, da história mundial: narrativas de costumes, do mapa geopolítico local e global, reveladas a partir dessa micro-história. Um achado dramatúrgico, cênico e historiográfico.
Nascida em 1920 e falecida em 2010, Jacy cresceu na minúscula Natal dos coronéis; viveu um romance com um soldado norte-americano, nos tempos da Segunda Guerra e da instalação da base militar estadunidense no RN; acompanhou a partida do irmão para se juntar ao esforço de guerra brasileiro no mesmo período; migrou para o Rio de Janeiro, como tantos outros nordestinos, lá se tornou funcionária pública e testemunhou o período do regime militar; reencontrou seu soldado norte-americano e por ele se apaixonou e dele se desapaixonou novamente; voltou para o Rio Grande Norte e desconheceu Natal, agora não mais a vila de sua juventude; idosa, passou a seguir uma estrita rotina de compras no Supermercado Nordestão e de comunicação telefônica com o irmão, até falecer vítima de complicações oriundas de uma queda.
TEATRO DOCUMENTAL – Sem dúvida, colocado assim de forma sumária, esse trajeto não faz jus às inúmeras curvas, reviravoltas, linhas e traçados de uma vida vivida em 90 anos, mas o achado do teatro documental não me parece ser a recomposição de uma vida tal e qual ela se deu, tampouco o tensionamento entre ficção e realidade; mas, sim, a justaposição que ele produz entre macro-história e micro-história. O teatro documental utiliza-se do dado biográfico, factual, serve-se de pontos desta história de vida “real” para abrir janelas de compreensão para nossas próprias vidas, para criar identificações radicais, para enxergar a história desde outros ângulos mais periféricos, para fazer a plateia se perceber agente e partícipe da história, para cotejar passado e presente, para, enfim, humanizar a história.
Nessa direção, é que a trajetória de vida de Jacy permite ao espetáculo fazer uma crítica do processo de modernização/urbanização das cidades brasileiras; pensar nosso atual momento político como um continuum das práticas da velha política que perpassaram o Século XX no País; constatar a nossa condição permanente de colônia. Permite ainda, aos atores, revisitar suas relações conflituosas com a cidade Natal, bem como, refletir sobre a velhice como preciosa depositária de nossa memória.
UM MUNDO DE DELICADEZAS – Do ponto de vista da linguagem, o espetáculo é leve, irônico, singelo, doce, mas ágil, rápido, profundamente marcado por recursos e expedientes do chamado teatro performativo. A construção dramatúrgica apresenta alto grau de consciência e domínio conceitual e artístico. O trabalho com vídeo amplia os limites do palco, sendo uma presença/personagem que se impõe com muito êxito na montagem. Os atores, donos do processo e criadores de toda aquela engenharia, movem a engrenagem cênica com grande destreza e carinho, como quem abre a frasqueira e se depara com um mundo de delicadezas a manipular com muito curiosidade e todo cuidado.
É, enfim, um belo trabalho o do Carmin, sobretudo por seu dado humanizador, por contribuir para tirar da lixeira estas memórias, pelo esforço em produzir uma contranarrativa e utilizar as potências do teatro documental para revolver os detritos da história.