Crítica – Quem tem medo de travesti?
Imagens – Divulgação
Por Rodrigo Carvalho Marques Dourado
Doutor em Artes Cênicas (UFBA) e Professor da Licenciatura em Teatro (UFPE)
TIMELINE TEATRAL
A linha do tempo do Facebook é, sem dúvida, a grande forma narrativa dos nossos tempos. Uma profusão de imagens, sons, notícias, propaganda, comentários, piadas, testemunhos, denúncias, em fluxo permanente, aos quais tentamos atribuir algum sentido. Para a militância LGBT, a Internet e o Facebook são importantes instrumentos de debate e enfrentamento. São canais de delação das barbaridades perpetradas à comunidade diariamente. São meios de humanizar os sujeitos por trás das bandeiras, de compartilhar histórias, reivindicar direitos.
Quem tem medo de travesti? (QTMT), peça de caráter documental fruto de pesquisa do Coletivo Cearense As Travestidas, parece capturar essa forma narrativa contemporânea, a das redes sociais. O espetáculo leva para a cena grande parte do turbilhão em que está mergulhada a comunidade sexo-diversa brasileira hoje, espelhando muito da maneira como corremos nossos olhos e corações pela linha do tempo do Facebook diariamente.
Por isso mesmo, a montagem se inicia com o áudio de alguém que se despede de um amigo suicida. Certamente, um áudio tornado público nas redes, assim como tantas mensagens de despedida de jovens LGBTs que tiraram a própria vida, ou como os inúmeros desabafos sobre violência e crimes de ódio contra gays, lésbicas, trans postados e compartilhados com frequência.
REDE DE CONFISSÕES
Se Foucault tinha razão ao dizer que nas sociedades modernas o sexo não era reprimido, mas, ao contrário, era excitado, posto em discurso, chamado a falar. Parece que chegamos ao ponto máximo dessa excitação: nas redes sociais, o privado se torna de interesse público e, sendo assim, é certamente o sexo o alvo primordial dessa curiosidade, dessa investigação. Aqui, no confessionário das redes, o debate sobre a esfera íntima das sexualidades torna-se incontornavelmente público e político.
QTMT bebe nesta fonte: é sobre confissões, é sobre testemunhos, é sobre tornar pública a dor, é sobre “jogar na cara da sociedade” o que antes se escondia, é sobre dar pinta livremente, é sobre criar comunidades, é sobre viver o luto, é sobre denunciar, é sobre não baixar a cabeça, é sobre ter direito à autodenominação, é sobre viver livremente a identidade.
Ainda no início do trabalho, umas das atrizes dá voz às interpelações constantes ouvidas pelo grupo: “Por que só montamos espetáculos sobre travestis, quase como uma obsessão?”. E a montagem, bem como a trajetória do Coletivo e de seu diretor/fundador, Silvero Pereira, parecem ser uma resposta a essa indagação. Não no sentido de uma justificativa, mas de uma afirmação deste lugar temático, estético e político. De maneira que QTMT não é somente um veículo para a confissão de outros, mas também um desabafo d’As Travestidas sobre o preconceito e a rejeição que cercam seu trabalho.
FORA DA NORMA
A montagem vai, assim, dando voz a essas vivências fora das normas de gênero, fora das normas da sexualidade, fora dos padrões corporais. Aparecem as lembranças de uma infância absolutamente queer: a paixão pelos galãs de novela, os primeiros desejos por homens, o preconceito familiar, o disciplinamento dos corpos, as pernas que se cruzam para reproduzir o genital feminino.
Emergem também as dúvidas e tensões na definição das categorias identitárias: homem, bicha ou mulher? Debate sempre acalorado entre as “verdades” da ciência, da religião, da militância e dos sujeitos sexo-desviantes. Irrompem as vozes da fé fundamentalista e persecutória, cujas contradições revelam um projeto de sociedade excludente e neofascista. Desnuda-se a dor dos “pequenos monstros”, colocados desde sempre à margem do humano. Expõem-se a metamorfose dos corpos, bem como episódios de luta diária por respeito e dignidade.
LUTO E ALEGRIA
Mas se você imagina que QTMT é somente um pranto, uma lamento em torno da violência contra as travestis e todos os LGBTs, engana-se. O espetáculo articula, como potência teatral, a ambiguidade afetiva fundante da comunidade: entre a dor e o riso, entre a melancolia e a gay(atice), entre a tristeza e o gozo. Eu já havia observado a maneira como Silvero Pereira manipulava esses afetos em BR-Trans (leia a crítica AQUI) e, agora, me parece que esse conflito fundamental (o luto permanente pelos que partiram e partirão versus a alegria em ser des-viado) se transmuta numa linguagem cênica mais consolidada.
Essa contradição está nos corpos, nos movimentos, na dramaturgia, na trilha sonora, na iluminação. A plateia vai sendo levada pelo choque permanente entre essas emoções conflituosas: entre a dor de ver mais um corpo travesti estendido ao chão e o prazer da “gongação” entre “viados”; entre a impotência de lidar com o gesto suicida e a carnavalização de transformar toalhas em looks de passarela; entre a vergonha diante do xingamento público e a festa do lypsinc. Quando imaginamos que a plateia vai ser tragada pelo melodrama, pelo lacrimoso, a direção nos apresenta essa possibilidade de saída da fossa.
Essa estratégia de composição de cena d’As Travestidas é muito política, porque é uma forma que revela a capacidade de sobrevivência da comunidade LGBT. O riso e a alegria não aparecem aqui como escapismo, como fuga, mas como ferramentas de persistência, como táticas de enfrentamento, como uma forma de dizer: “Apesar de tudo, resistimos e seguimos”.
TEM COMO BOTAR MAIS “VIADO”?
Gabriela Monelli, Viviany Beleboni, Verônica Bolina, Leona (a assassina vingativa), Roma Gaga. Estão todas lá, de forma direta ou indireta. Do lado mais sofrido da experiência travesti ao seu lado mais jocoso, QTMT nos confronta com essa profusão de sujeitos (antes restritos às sombras) e trajetórias. A metáfora transborda para a cenografia: portas sanfonadas de comércio, marcadas por pichações – a lembrar o pano de fundo em que se dá a prostituição travesti noturna – abrem-se e convertem-se em vitrines, das quais saltam essas figuras.
Em cena, os sete artistas se apresentam em trajes cor da pele, remetendo à intimidade travesti, e, aos poucos, vão incorporando diversas imagens e máscaras. Inverte-se o jogo: se antes, era somente no território das máscaras que tínhamos contato com o universo travesti, agora é com sua intimidade corporal e identitária que primeiro nos confrontamos. Mas a teatralidade está lá, dando passagem à vida “real”. Um gesto de desnudamento artístico, pessoal e social é o que promove o Coletivo As Travestidas.
Emblemática, no espetáculo, é também a imagem de um dos atores carregando galhas do animal veado. Para além da ironia e da brincadeira com a expressão veado (ou “viado”), utilizada popularmente no Brasil para designar homossexuais e travestis, o ator que a incorpora produz movimentos espasmódicos de grande força e impacto, trazendo para o seu corpo as dores e castigos aos quais ainda está submissa a população LGBT. Síntese das ambiguidades afetivas a que me referi anteriormente, sofrimento e ironia, o veado/viado remete às figuras do Butoh e nos faz lembrar que é preciso lidar com nossos “fantasmas” do sectarismo sexual e que eles estarão sempre, e insistentemente, aqui.