Crítica – Luzir é Negro! | és um ‘como se fosse’
Imagens – Ricardo Maciel
d’Ozzi
para Luzir
[a prosa do bruxo da sétima casa dos girassóis
a dança da sombra com a irmã luz
o perdão tão quase impossivelmente inalcançável
o luzir, a imensidão, o nada: esse silêncio
essa mão que não se aquieta, que não encontra paz
se fraqueja
essa carne que não se quebra por que aprendeu
a ser amarga e crua e macia
tudo isso é nada. É nada como se fosse rio a cair em cascatas
o mundo. Pra nada. Veneno que não mata. Sombra que não amansa
Como se fosse pássaros, o mundo sempre me fora
por isso sofro os dias, não os vivo
não tenho mais tempo para viver a vida
essa coisa que não antecede nada
ando satisfeito
sei empunhar espadas sei amar aos cios
sei vestir sorriso e morrer de tristeza e abandono
forjado em fogo tribal
talhado meu rosto na madeira
dos corpos não sinto mais o gosto
Ah! Como amo a vida dos pássaros
como invejo a tudo
e é isso que me perturba a vida, ressoa, tintilha
é isso que não me compra gramas de paz de espírito
eu vivo sobre o susto eminente
vivo trêmulo de horror a beleza daquilo que se consome
e se comendo gera seu próprio combustível para viver
disso nasce, gosmento, num canto da sala
a criatura
o poema mudo cujos dias passarei decifrando
é por isso que estou vivo e não recuso o que clama].
recife, 17 de novembro de.
(devaneios celestiais e desagregados que a entidade do poeta registrou ao ser chamado vinte vezes a chegar com furor a chacoalhar seus sinos de dias florais, olhos vermelhos e mergulhos cretinos).
Luzir é Negro!, estreia, recife dos manguezais das noites quentes, de filhos violentos e violentados. Salve aquele que pariu o inconcebível . salve o poeta entre vós.
(aqui começa a prosa em forma de poema. Aquela que não veio para apontar caminhos, nem para falar sobre a barra do vestido mal costurado. Deixo isso para os de olhos conduzidos. Os que desejam ensinar humanidades. Eu não. sou um raio emitido no tempo de ser raio e desapareço. quando a palavra pede, a gente se cala, a gente convulsiona e uiva aos cães, de volta, saudando-os. Aqui começa a prosa, tudo que antecede, como os ancestrais mansos, era o teste de uma coisa tecnológica, os homens atuais chamam de microfone. Os filhos dos homens, mal sei, estão boquiabertos com tesouros fáceis. Só restaram poetas, pimentas malaguetas, gente que tem coragem de tocar em bandolins, em gritar ridículos, pintar a cara, afeminasse. Vou dizer a palavra leprosa: restaram os artistas. Não, não estou falando dos alunos do curso de cênicas, nem dos amadores que não despencam, que não se ferem, que não morrem. Não estou falando dos feios, mas dos bonitos. Se eu estivesse falando dos bonitos, eis que estaria falando dos feios.
Quero provar que tudo isto posto não dará em nada, mas é por isso que sonhamos as estrelas e poetizamos nuvens. Morremos ao mar por que somos grãos indisciplinados. Estou falando dos que se afetam, dos que morrem mortes irreversíveis, que vivem deixando pedaços de sua carne pelas vias que andam. Comprar o pão pela manhã, adoecer a tarde, lembrar da vida quando entregar-se a paixão. Um dia a gente cai do talo. Quem levantar-se-á a dizer que luzir não é isso? Que a intenção de luzir é a mesma intenção do cheiro de alecrim atiçado com a força e vingança da cura. Sim, vingança. Erguer-se da doença e sarar deve ser um urro de vitória, de vingança como quem mata o inimigo a dentes, com seus próprios dentes. Estou confeccionando a palavra do dia da minha morte como quem suspeita que, mesmo enterrado, sentirá a dor de está enterrado. Estou construindo a palavra de minha vingança. Desperdiçando palavras como quem deixa torneira aberta a fim de engasgá-la com aquela palavra maior que concebe o texto. Há de existir a palavra primeira, a mais corajosa, a que ordene o poeta a ser maior e existir com esse medo.
Eu não me importo (- importar para dentro! disse-me o óraculo. – é aquilo que a gente come? Perguntei-lhe. Ela disse: – não, criatura desatenta, é aquilo que o símbolo devora, animal selvagem. Bati-lhe com meu bastão a nuca e a fiz dormir, serena, por três noites, por que éramos a hipoteca dum amor selvagem, dilacerante, vermelho, amor.) com quase nada com exceção das avencas que estão graves de botões a parir a qualquer momento suas flores suculentas. Sou alguém que tem voz, como os senhores podem perceber, mas que não tenho apego ao corpo. São raras as vezes que lembro-me do meu corpo. Quando estou comendo o azedume ou quando o sol me queima as têmporas, ou ainda quando choro em tributo a alegria consumido de possibilidades. Mas uma vez nessa altura da prosa posso irromper inquieto e raivoso para tornar legítimo minha necessidade de atestar, em primeira pessoa, como se eu mesmo tivesse aliciado a mim mesmo com cânticos como aquela que seduz pelo seu doce cantar nos excitando e convencendo de maneira que não precisamos dizer não.
Preciso ser rápido por que me resta pouco, embora eu esteja sempre disposto a mais uma palavra a fim de extrair sulco de nossa capacidade de ser ‘alegre e tranquilo de alma’ quando nos virarmos pra nós mesmos e conseguirmos existenciar o susto entre a alma e a carne frígida. Eu vi os negros ocuparem os bares e serem cuspidos por serem negros, vi seus sangues mesclar as cadeiras das lanchonetes. Eu vi os negros sendo mortos e serem paridos pelo ventre frio e cruel dos navios negreiros. A altura de meu olho viu tudo quanto podia alcançar antes de cegar. Ainda assim luzir me dizia que eu sabia nada sobre nada e fora nesse instante que sugira a sorte, a última cartada: a condição d’eu poder-me esvaziar-me por que nada haverá de ser o sentido mais eficaz no futuro. Posso dizer que, o fato de eu está sentado a contemplar ‘luzir é negro’ numa cadeira qualquer, eu o grande, o megalomaníaco, aquele que não se contém, o deus hemorrágico, por si mesmo já valida essa prosa por que ‘luzir’ mexeu com as minhas entranhas, mais para o lado donde reside as vísceras.
E eu permiti que ‘luzir’ bailasse sobre o mapa de meu corpo sagrado de amor que quer amamentar todos os homens e botá-los pra dormir mais cedo a fim que descansem o dia perdido. É um espetáculo que faz a gente gozar, de pernas bambas e abertas, uns na cara dos outros por que me parece que lá a gente aprende, dalguma maneira, a mortificar esse eu que a uns cosem vestidinhos, a outros matam os piolhos, a outros matam a vida. É uma peça que faz a gente querer o anônimo, mas que também faz a gente diferenciar-se e bater no peito, dizendo: * ainda não estou pendendo mais para o caminho dos perdidos [ao longo das avenidas dessa prosa, eis que os senhores poderão ver irrompendo, feito vulcão adormecido a anos, lampejos de frases didáticas como quando os ‘mestres’ tentam nos conduzir a tudo nos matando o direito ao nada. De embalarmos o nada, nosso feto de dias, nas mãos trêmulas de ter ascendido o lugar do privilégio]
Luzir é negro é uma carta aberta aos senhores donos de toda a gente. deve ser distribuído cópias de luzir é negro pelas esquinas da cidade a fim de fazer os trombadinhas acalentados e dar-lhes o direito de um estado de direito de vestir também a coroa. Luzir é negro é a luz que padeceu a má fama. Encontraram-no a beber d’agua a beira do rio dado de graça pela natureza e o empunharam um nome que não era o seu.
Dividirei essa prosa em duas chances: a de falar de nada, que é o movimento autêntico da arte para alcançar tudo. a lágrima, talvez. o pão. falarei da poesia que é um nada muito perto dum desejo de ter. possuir. e por isso cansarei os senhores e seus olhos fadigados de mesmice. Oxalá que alguém se entenda no texto. Vou colher todas as verduras que eu quiser, nessa prosa. Achariam que eu daria tudo fácil como quem abusa de poder como quem ensina na academia das artes? eu não. meu texto sempre será um calo de sangue no olho, um desfoque. uma dose extra de conhaque. Um perigo que faz vítimas. A outra chance que darei é falar de ‘luzir é negro’ que é tão luz céus, que cega a gente. que é tão luz que é por isso que é negro, para ser o que se é desde que se é, no início.
É também profético sendo laico, por que sauda e clama por melhorias e diz dos garotos e garotas de hoje que serão homens e mulheres do futuro. Para que vou falar? Para ser útil a mim mesmo. Nessa segunda chance que vivo tentando falar e a palavra não deixa, falarei sobre o que é, pra mim, como quem diz uma frase sob encomenda, frase pronta, numa propaganda de café de terceira. Luzir é negro fica na gente feito resíduo por que é um negro contando sua própria história. É um laboratório científico cujo convite rejuvenesceu minha alma de esperança tardia, o que é grave por que eu odeio ter esperanças por que é muito pesado o que me espreme para eu admitir que ‘- espero com ânsia um dia ser menos atingido e mortificado’.
Isso que escrevo sobre luzir é um retrato encomendado. Por mim a mim mesmo, evidente. Não poderia ser o contrário nem tenho alma que se vende. É uma encomenda cujo retratista só aparece para tirar a foto se no prenúncio da aurora o amor brotar entre as presas, por entre o rugido do predador sendo devorado pela sua vítima. Eu gosto de luzir por que ele tenta ser verdadeiro, é um rico que não precisa pra si dos tesouros para legitimar-se, embora reivindique sua terça parte do tesouro dos homens.
Já desisti dos caminhos. De todos os caminhos, como quem não acerta mais o caminho da horta, nem da frutaria, nem dos motéis quentes e de nomes carmesins piscantes. É por isso que sempre que acordo levo muito tempo para me aprontar, e raramente alcanço a recompensa. Sou um amante da auto destruição como o alpinista que devota-se a escalar montanhas. Digo-vos isso por que o mundo devorou meu corpo, como o corpo de luzir. Não meu corpo por ser negro, visto que sou de cor incolor, visto que sou a antítese, mas meus senhores, sou isso que vos fala por que não tenho rabo para pentear, nem tomei moedas de ouro emprestada ao rei, sou um ser livre para morrer-me em espelhos feito narciso. É por isso que esse acordo de compor sobre o que já fora concebido me é a coisa, de todas as anáguas juntas, a mais difícil de coser.
Levo dias assustado com o texto. Atravessando a avenida com cuidado para não ser atropelado por alguma carruagem atrasada sobre si mesmo a vida entardecida. É por que sou dos tempos das carruagens. Esse tempo que cria em cada esquina um fast food ou uma loja de conveniência não me convence jamais, sou um deslocado, alma vagante e desesperada, esperando ser salvo pelas apólices das flores cujo caminho encontrei a salvação. É por isso que meu maior crédito é o direito que dou-me ao devaneio cuja vossas refutações não desmontara por que falo o que falo já amaldiçoado por Deus. Não tenho que alimentar filhos nem cães para, assim, dar-me a mim mesmo, o direito a fala, a casar com palavra.
Escrever, é, sobretudo, mentir por amor. mentir sob o aspecto de que, se uns comem pão e outros pedras, a vida não é real, é falsa. observei que, para começar a dissertar, mandar-me desertos adentro das línguas, dos corpos, das sífilis, das flores, do rebanho de cabras. Preciso testar o papel, tingindo-lhe cores quaisquer. Preciso chamar o poeta como quem precisa pedir favor ao amigo que ainda não sabe que é o amigo. E pudera nem chegue a saber. Como quem se aproxima do microfone e blasfema palavras a fim de testar, ainda, o alcance do som. A vida sempre imita a vida. há de ser uma experimentação como faz o samurai com sua espada, dançando a luta, saltitando febril.
Escrever sangra minha vida, desconcerta-me as máscaras. Entorta-me os quadros fosse eu mesmo uma parede. Há em mim um cheiro enjooso de querer ser honesto e verdadeiro quando meus dedos tocam as teclas das letras virtuais, quando minha mão maneja o lápis com maestria de quem maneja o mastro que aponta para o futuro de altos mares. Viver é para os ambivalentes: para os que conseguem continuar sendo cavalo selvagem. Eu sofro a maquete da palavra desde a gestação da base do edifício inteiro. Só então me ilumino e fantasio de mentiras, delirando febril, a verdade firme das coisas que nos permitiriam ser se os homens deixassem florescer as flores da erva boa, no mundo. É com esforço hemorrágico e prostrado diante da deusa palavra que ouso dar sentido ao meu texto.
Aprendi a escrever com dona Severina barroso (que era analfabeta e precisava ‘melar’ o dedo para assinar seu nome) enquanto ela esculpia, com mãos cheias, o barro que seria o vaso para comportar o amargo bálsamo da vida. Aprendi a escrever antes, quando ela ia buscar o barro, no meio do mato, pelo faro, bicho nativo. Afastava os matos e enfiava as mãos dentro do barro escuro e húmido. Dava vontade de comer a terra, nesse instante. Tirava do útero da terra a quantidade suficiente para construir suas panelas de barro, seus bibelôs e vender na feira. Aprendi a escrever antes de inventar a palavra, antes de saber que palavra existia. Aprendi a escrever pelo cheiro, pela complexa e árdua rotina de querer saber do mal para continuar, com bravura, a perseguir o bem. Valha-me, quantas noites convulsionei a procura de mim mesmo até cair na auto-cilada do poema. Quantas pernas e braços não perdi nessa procura de viver e quantas outras pernas e olhos não ganhei.
Quando escrevo estou esquecido. Estou ocupado em construir cheiros, colorir alamedas, mudar o humor do meu personagem. E depois ainda tem o som das teclas do meu piano, que é a maquina de escrever. Há o deslizar da mão sobre o papel conduzida pela a alma o corpo, como quem limpa o necessitado, alimenta um cão faminto, retira carrapatos dos filhos desses cães. Há a glória que só o invisível consegue definir e que a patente não dar conta. É sobre a justificativa de anedotas que concebo o texto, fora assim desde os ancestrais e será sempre, esse ritual, essa mal’dição. Acerca do meu texto, responsabilizo-me eu. e eis que é dessa penumbra que irrompo agora para anunciar aos senhores e os filhos de vossos senhores, os homens.
Que ‘Luzir é Negro’ é uma aula de história do mundo contada com indignação, e, portanto, é uma aula de história da existência que poucos emprestarão seus corpos para compreender. Luzir é negro é um como se fosse tão perto do ser que a gente vacila entre o riso e o constrangimento desse riso. Há momentos que a gargalhada é por desespero, há momento que é risada chorosa como dia que chove e faz sol ao mesmo tempo.
silêncio! Silêncio! O poeta chegou. Encarnou mais uma vez. Tragam-lhe o azeite e derramem abundante, vistam-lhe a palavra virgem e aprontem-no as boldas:
“(…) quando entrei naquele lugar, eu que tinha passado vinte e sete dias nas profundezas marítimas. cheguei para ver um negro se contar, feito quem se banha em espelhos d’agua. Nervoso! Soprei-lhe os ouvidos, como quem sabe que o amor é fé no que não se pode ter fé, homem. E ele dançou. Dançou fruta madura tirada agora do pé, alimentada pela terra. Dançou música, dançou para cantar. Foi festa e eu presenciei, eu que sou alérgico a quase tudo, misturei-me ao dia dos que louvavam a vida amando e confrontando o outro. Depois em uma grande nuvem de areia voltei de costas pra o mar e de lá só retorno sobre outros aspectos de rituais. Vim para vadiar. Vim para contemplar, do que o olho viu cumpri com a promessa, vida longa ao luzir e donde tenha-se pele sobre a terra haveremos de entoar cânticos, como que gregorianos, por essa didática que prevalece sobre tudo isso que é experimental.”
– uma fagulha de amor queima o mundo inteiro. Novembro de 2016. Emporio das Ideias LTDA. Recife, pe. Prosa poética sobre o nada que prevalece. Prosa de cunho libertário. Di Ozzi Cãndido.