Crítica – Processo Medusa | Elogio das Víboras
Imagem – Sérgio Sá
Por Elson de Assis Rabelo
Doutor em História (UFPE) e Professor Adjunto do Colegiado de Artes Visuais e da Licenciatura em História (UNIVASF)
Nascida em maio de 2008, a Cia Biruta de Teatro tem atuado no sertão de Pernambuco, especificamente na cidade de Petrolina, optando por aliar a produção teatral com ações de formação artística de jovens da periferia, de que é resultado a criação do Núcleo Biruta de Teatro, há 3 anos. Na concepção de seus espetáculos, a Cia e o Núcleo Biruta têm procurado dialogar com as questões sociais e políticas do Brasil contemporâneo, apostado na pesquisa antropológica dos processos e práticas populares de cultura e resistência das margens do rio São Francisco, e no intercâmbio criativo com experiências e grupos de teatro locais, nacionais e internacionais.
Quando teve início o espetáculo Processo Medusa, confesso que tive medo de um possível viés panfletário, advindo das imagens em vídeo sobre as mulheres na luta revolucionária. Não pelas mulheres ou pela revolução em si. Mas pela forma ou pela linguagem teatral, que, como tantas vezes acontece entre as artes, corre o risco de ceder maior espaço à mensagem, não obstante sua urgência e importância.
E, daí, é importante dizer: esse texto não vem da parte de uma mulher, nem de um ator. Não quer tomar o lugar de fala das e dos artistas, nem opinar sobre questões não vividas, sofridas e protagonizadas por quem o escreve.
Dito isso, gostaríamos de dizer do impacto estético que o espetáculo trouxe, para além do panfleto, como pretexto para celebrar a passagem dos 10 anos de tão relevante atuação, criação e provocações que a Cia Biruta tem realizado no interior de Pernambuco e na Bahia, e no teatro brasileiro de um modo mais amplo.
Processo Medusa cumpre um caminho sinuoso entre o teatro documental e a releitura do mito grego. O teatro encontrou uma maneira de atentarmos melhor para as informações que correm na mídia sobre a violência de gênero, sobre a agressão cotidiana às mulheres em nossa sociedade. Na cena, essas informações são encarnadas nos corpos das atrizes, que, tão jovens, são simbolicamente abatidas pelo peso trans-histórico e trans-cultural do patriarcado que se atualiza em nossa cultura. É necessário que a dor e a morte apareçam na arte, na ficção, na poesia, no palco, para que nos toquem de um modo diverso daquele da notícia dita imparcial.
A reinterpretação da mitologia segue, na peça, respeitando uma dimensão fundamental do mito: mesmo que essa seja, muitas vezes, uma narrativa de nossa emancipação da condição natural, animalesca mesmo, rumo à nossa humanização, o devir-animal nos interpela, entra na nossa constituição de gente: devir-cachorra que quer romper os fetiches sexuais, rosnar, avançar e proteger seus territórios; devir-serpente, que rasteja, faz barulho, fere e envenena. Que isso nos relembre que nossos mitos filosóficos, pedagógicos e culturais modernos dizem que o homem se emancipou da natureza para dominá-la e se tornar homem – mas esse Homem se enunciou demais no masculino e adjetivou demais a natureza no feminino, como se mulher e natureza fossem da mesma matéria, desfrutáveis, passivos, receptáculos. O devir-animal, então, funciona como um contraponto necessário, é possível uma resposta, há resistência, há contra-ataque, institucionalizado ou não. A víbora pode atacar para se prevenir de ser esmagada.
Uma atenção particular às três bruxas, mensageiras do destino, que, na mitologia, acertam as contas dos mortais para com os deuses. Nessa releitura, as Erínias ou as Fúrias, que podem bem ser nossas velhas índias cachimbeiras e curandeiras, nossas avós conselheiras que manipulavam ervas e casca de pau, ou as temidas iamins-oxorongás, ancestrais africanos da feminilidade e do feitiço, podem trazer não a sentença inescapável do destino, mas um presságio da reversão dos destinos manifestos reservados às mulheres em nossa sociedade, especialmente àquelas que sofrem a violência e a insegurança.
Talvez um passo seguinte para a Companhia, num outro momento, seja chamar mais o masculino para a problematização, como protagonista do machismo e dos males que ele provoca. Sim, como homem, posso falar: somos muito mal articulados, inclusive na linguagem, custamos a problematizar nossas categorias, nossas formas de agir, de sentir, de ser e se tornar homem, porque nos acostumamos a essa ideia equivocada de que o mundo é nosso. Mas, acreditem: de perto, o vilão é mais frouxo, ele chora, ele brocha, ele também fracassa como projeto. Por isso, o homem precisa do feminino.
Elementos cênicos, como as projeções de imagens, os tambores, a iluminação avermelhada, a música, especialmente a crítica ao machismo onipresente na cultura de massa, são particularmente enriquecedores. Mas é comovente ver as atrizes se desfazerem desses recursos, no elemento cênico final, que nos lembra da histórica queima dos sutiãs, da desmontagem da drag queen ou da atriz de modo geral, da perda deliberada de uma identidade quando é necessário transitar para outra – todos eventos e processos que indicam o aspecto social, cultural, disciplinar, modelador e contraditoriamente criativo que contém o ato de pôr uma roupa sobre o corpo, ou pôr o corpo dentro de uma roupa. E, então, o próprio conceito de revolução citado no começo e no fim do espetáculo é repensado, pois o enfrentamento da opressão e da exploração passa pelos nossos mínimos gestos e afetos, passa por exercer um novo cuidado sobre nossos corpos.
Como um dos mais recentes espetáculos montados pela Cia Biruta, esperamos que o Processo continue a processar, inacabado, transformando, digerindo, fazendo metáfora e abertura. E que o vigor da comemoração desses dez anos de resistência provoque ainda mais nosso pensamento e nossa sensibilidade! Vida longa e próspera!