#20 Territórios em Trânsito | BÍPEDE SEM PELO: plano coreográfico
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Arte – Rodrigo Sarmento
Por Alexandre Américo[1]
Artista e Pesquisador. Licenciado em Dança e Mestre em Artes Cênicas (UFRN) e Fundador da TORTA, Plataforma de Arte Expandida[2]
planos de composição
A dança contemporânea, ao longo de seus inúmeros e específicos processos de nomeação, parece voltar-se para a experiência do corpo e seu entorno a fim de elaborar modos de sustentação enquanto proposição estética. E essa dança, por privilegiar a sua qualidade de efemeridade, negligencia, recorrentemente, suas estruturas de notação escrita em prol do seu fazer prático e cinético.
De modo agravante, quando se trata da elaboração da experiência em dança por corpos racializados, a notação escrita revela-se como um recurso ainda menos oportuno. Logo, a iminente exclusão de nossos corpos em ambientes coreográficos de arte. Sentindo e pensando nesta questão, é que tenho tentado hackear e compartilhar ferramentas de conceituação e roteirização para corpos que, historicamente, por uma questão de classe e racismo estrutural, não tiveram acesso, bem como eu, ao modo de produção vigente do sistema de arte. Para tanto, compartilharei, de modo reflexivo, o que tenho nomeado de Plano Coreográfico.
Antes, para a elaboração deste texto, preciso marcar a compreensão do corpo como um fenômeno vivo, médium e encruzilhada das camadas de composição que compreendem as performatividades pretas nos ambientes coreográficos tradicionais e contemporâneos. Portanto, além das práticas orais que incorporo em meu fazer, justo por seu caráter efêmero, é que sinto a necessidade da formulação e consequente notação em dança.
Me parece cada vez mais emergente, a garantia do assentamento das ideias em sistemas sígnicos de notação, em contraponto ao tempo desenfreado do progresso do qual os nossos corpos são também matéria, pois somente atentando para os “saberes da terra” (MAFFESOLI, 2021)[3] é que conseguimos deitar no “colo da ancestralidade” (BISPO, 2023)[4] esticando a nossa “duração no tempo” (LAPOUJADE, 2017)[5], na “tessitura da realidade comum” (RANCIÈRE, 2002)[6] dos nossos modos de ser ‘outras histórias em dança’.
Para tanto, me imanto do termo cunhado por Leda Maria Martins[7], “oralitura”, no intuito de pensar as práticas orais de transmissão e confluência de saberes tensionando, também, as performances escritas no corpo-tela e no plano do papel.
Assim, irei refletir sobre a prática da dança como intrinsecamente corporal e intelectual, ou seja, uma produção de natureza não-dicotômica que valoriza e compreende o ser/estar da dança como produção de saberes e articulações multimidiáticas e específicas. Portanto, escrever, mover, desenhar, respirar, perceber, filmar, sentir, pensar, esquecer, roteirizar, memorizar, sonhar, imaginar, cantar, falar e atuar, são todos gestos também em dança.
Assim, me muno da noção/provocação de André Lepecki acerca dos planos de composição para a elaboração de danças contemporâneas:
Um plano de composição é uma zona de distribuição de elementos diferenciais heterogêneos intensos e ativos, ressoando em consistência singular, mas sem se reduzir a uma ‘unidade’. Todo objeto estético envolve em sua construção a ativação de mais de um plano de composição. Alguns dos planos de composição que distinguem a dança teatral como modo de fazer arte são: chão, papel, traço, corpo, movimento, espectro, repetição, diferença, energia, gravidade, gozo e conceito. Cada um desses planos não deixa de ser também um elemento de outros planos. Planos entrecruzam-se, sobrepõem-se, misturam-se, entram em composição uns com os outros, atravessam-se. Por vezes, mesmo, se repelem e se autonomizam. Isso não os impede, contudo, de permanecerem inter-relacionados no metacampo de expressão que os agencia – por exemplo, um metacampo chamado ‘dança’, construído, definido e desmanchado a cada novo e singular obrar, a cada nova peça que se dança. (2010, p. 13)[8]
fundamentos
Para evitar a armadilha da criação em dança esvaziada de envolvimento e crítica, tenho compreendido a importância de uma elaboração em dança que demande tempo, repetição e profundidade. Este modo de fazer está diretamente enovelado à noção de campo de composição enquanto zona ou instância deste metacampo ao qual, aqui, nomeamos dança. Assim, como um exercício de duração nas materialidades que fazem parte do processo artístico em que estamos imersos, elaborar, notar, transmitir e “corpar” os planos composicionais são fundamentos imprescindíveis para uma dança com maiores condições de eco entre os corpos e contextos na contemporaneidade.
Para tanto, irei compartilhar uma notação coreográfica e seus planos de composição, a fim de criar uma zona de confluência e transmissão desse modo de organizar os materiais efêmeros de nossas danças contemporâneas. A partir de um núcleo dramatúrgico, orientei este arquivo nomeando cada plano de composição um a um, me dedicando à elaboração conceitual e sensível de seus aspectos. Assim, Conceito, Materialidades, Peles, Luz, Teatro Colonial e Coreografia, conformam o Plano Coreográfico desta peça.
BÍPEDE SEM PELO[9]
Notação coreográfica escrita por
Alexandre Américo e Pedro Vitor
PLANO COREOGRÁFICO
Conceito: O Bípede é resultado da dialética do natural e cultural. Animal humano da idade da terra, preto de cabelos crespos e barba emaranhada. De cabeça feita à Omolú, ele encarna o complexo paradoxo entre a vida e a morte, a praga e a doença. Um animal que busca os assombros dos mistérios que compõem a matéria escura de sua carne.
Materialidades: Os tecidos e a palha da costa como representação do orgânico. Solo terroso de espiral contorno e de um tempo incapaz de medição.
Peles: A Pele de dendê e mel reflete as coisas visíveis e
invisíveis, como o abebé de Oxum. Corpo escoriado, lamacento e
negro, carrega, em si, a justa potência de Nanã no barro, bem
como o trabalho de Ogum em sua cintilância azul.
Luz: Feito o antigo branco de dupla essência de Oxalá, a luz
circular cria e recria, constantemente, o mundo carnificado em
seus mistérios e macumbarias.
Teatro Colonial: Representação do inorgânico. Corpo da razão moderna, do tempo da cisão entre o oriente e o ocidente. Invenção expropriadora que invade, à base de sangue e aterramento, territórios e vidas que outrora dançavam em pisos de terreiro. Um ser duro e insensível, cuja única razão é perpetuar o delírio de ser Branco no mundo.
***
Todavia, vale lembrar a importância de um movimento intenso de ausculta ao processo de fazimento de refazimento das obras, pois à cada dança o que lhe é devido, ou seja, para cada dança faz-se necessário e urgente, a nomeação de seus próprios planos e instâncias, pois não há, em uma sequer dança, as mesmas condições de uma outra. Farejemos, então, o devir inaugural de cada acontecimento, convocando, sempre, outros modos de agenciamento.
Na medida em que a poética da obra vai se revelando, em meio às escolhas e seus materiais, descobrimos uma poética também desta notação. A lógica misteriosa da escrita deve servir à ativação da peça, esse é outro fundamento importante. Com isso, quero dizer que a notação funciona como um tipo de arquivo, dispositivo ancestral de memória viva que, ao encostar no corpo daquele que pisa o terreiro da peça, possui o corpo/rodante como um santo. Dotando-o da presentidade encantatória da obra. Assim, o passado se matiza ao presente e ao porvir, inscrevendo a dança no corpo.
Logo, oriento a escrita dos planos desde uma perspectiva performativa, que valorize a complexidade da peça. Podemos escrever ancorados na concretude das coisas, nos mistérios, ou matizando ambos. Talvez, a instrução mais efetiva seja: escreva orientado à construção imagética do acontecimento-dança. Isso quer dizer que devemos compreender que, inclusive, as emoções e os sentimentos também são imagens. Aliás, tudo o que percebemos e sentimos, cheiros, temperaturas, emoções, o “corpo propriamente dito” e todos os fenômenos estéticos fazem parte do que entendemos por imagem (DAMÁSIO, 2018[10]). Imagens alicerçam a mente e são a terra fértil e necessária à produção dos processos de consciência, é por isso que sustentar as imagens que gestamos em dança é mais um fundamento que não podemos vacilar. Pois “as imagens competem” por suas ínfimas realidades (BITTENCOURT, 2012)[11].
sobre o plano coreográfico
Dessa forma, proponho uma escrita um pouco mais poética e coerente no tocante aos incontáveis e singulares planos composicionais da peça. Todavia, ao longo dos últimos quase 10 anos de criação coreográfica, percebo que um plano parece recorrente e comum às práticas em dança: o Plano da Coreografia. Nomeamos, nesta pesquisa, este modo de fazer notação em dança de Plano Coreográfico. Este, por sua vez, é composto pelos planos singulares de composição, bem como o Plano de Coreografia, que falaremos a seguir.
Com isso, sugiro que o Plano de Coreografia seja fundamentado a partir de cenas, quadros, momentos, atos, com suas nomeações próprias respeitando a poética da peça. Com uma escrita enfocando nos agenciamentos que o corpo/rodante media ao ser a encruzilhada das zonas tensivas de composição. A dança aqui é expressão das forças de composição dada a ver e sentir pelo corpo em estado de encruzilhada. Pois como confluem Helena Katz e Christine Greiner:
O corpo não é um meio por onde a informação simplesmente passa, pois toda informação que chega entra em negociação com as que já estão. O corpo é o resultado desses cruzamentos, e não um lugar onde as informações são apenas abrigadas (2005, p. 130-131)[12].
Portanto, é basilar que a escrita da coreografia siga uma lógica mais concreta e causal, de acordo com a sequência de acontecimentos dispostos no tempo, bem como costumeiro dos roteiros filmíticos.
plano coreográfico:[13]
O preto que corre
No espaço escurecido, um caiçara corre circularmente revelando-se, em partes, por feixes de luz que recortam seu corpo vestido com um calção azul cintilante, típico dos momentos de futebol da população encarcerada.
A pausa ritual
Na penumbra, o bípede pausa em frente a um prato e uma xícara de ágata brancas. Ainda ofegante agacha-se e se banha com água, azeite de dendê e mel, respectivamente.
O mergulho
Levanta-se e vira em direção à palha da costa disposta no fundo esquerdo do palco. Seu corpo dobra lentamente pendendo seu tronco para frente. Fundindo-se à palha, ele pausa.
A revelação
Sustentando as palhas com a força de suas carnes, o bípede caminha em um pulso quaternário, lento e silencioso. Seu deslocamento espiralado é acompanhado pela luz, que revela todo o espaço à sua passagem. As palhas caem no centro das materialidades dispostas no chão. A caminhada em espiral continua agora distanciando-se do centro, até seu desaparecimento na periferia do espaço.
A dissolução na paisagem
O corpo adentra a paisagem outra vez. Abaixa-se, veste a matéria, bate a cabeça e os quadris no chão para dar início às torções e amarrações de todos os tecidos à sua cabeça.
A devoração
Pausa diante de outro emaranhado de tecidos. Lentamente, devora brilhos abaixo do monte.
A viração
Agarra o monte com as mãos e desloca-se para o centro do palco. Subitamente, vira o amontoado de panos em direção à sua cabeça desvelando penas e brilhos coloridos, tais como os caboclos.
A sustentação
Em meia ponta o bípede sustenta todo o peso de seu corpo e de
todas as materialidades sobre sua cabeça. Ele cai da meia ponta.
O giro
Ainda sustentando as materialidades sobre sua cabeça, ele inicia um giro suave no sentido anti-horário. Pouco a pouco, as coisas se desfazem na medida em que o pulso do giro ganha peso e velocidade. Ele tomba.
A morte-vida
No chão, em meio aos tecidos terrosos, materiais brilhosos e
coloridos, algo pulsa. Treme.
O quadrúpede
Parido pelas coisas, uma criatura quadrúpede desloca-se
lentamente até desaparecer na escuridão.
O rodante
Do breu sob uma contraluz, surge um bípede que pulsa axé e dança rodopiando como um brincante. Salta, gira e gira. Encantado, o ser dá corpo às manifestações culturais da terra cuspindo mel, saliva e brilho. A luz finda e o único que resta é a memória sonora, visual e olfativa daquilo que rodou.
FIM.
nota pós-plano coreográfico
Por fim, compartilho a notação coreográfica, na íntegra, junto a um pedido silencioso de cuidado. Acredito nas confluências, nas somas, mas sobretudo, na ética ancestral do respeito às nossas referências e ancestres, encarnados ou encantados. Que possamos ser co-responsáveis com o decurso dos saberes em dança. Que possamos, com essa notação, cantar, dançar, sonhar e inventar os nossos mundos comuns.
Notas de Rodapé
[1] Artista caiçara e neurodivergente, pesquisador da Dança com Licenciatura em Dança e Mestrado pelo PPGARC, ambas pela UFRN. Hoje é atuante na área da investigação em Arte Contemporânea, com enfoque em estruturas performativas, improvisação e seus desdobramentos dramatúrgicos. Foi aluno especial de Doutorado em Estudos da Mídia, UFRN (2021) e Direção Artística da Cia Giradança (2018-2023), Natal-RN. Se interessa, também, pelos estudos da Cripstemologia (teoria aleijada) junto a artistas DEFs da periferia de Natal-RN, fundando a TORTA plataforma de arte expandida, ainda em 2024.
[2] Conformada em 2024, TORTA – Plataforma de arte expandida, é um projeto de pesquisa e experimentação comprometido com a produção e difusão de arte contemporânea numa perspectiva ANTICAPACITISTA, ANTIRRACISTA e ANTILGBTFÓBICO. Compreendendo a condição híbrida das artes na atualidade, ele traz a noção de zona dissoluta como conceito de pesquisa e criação artística a fim de emancipar os corpos divergentes numa perspectiva acessível e racializada, no combate às desigualdades sociais. Aqui, a arte contemporânea se expressa dissolutamente sem fronteiras definidas à priori e admite a experimentação de linguagens artísticas, híbridas ou expandidas, no intuito de provocar deslocamentos, entortando e questionando a realidade dada para abrir espaço à criação de novos mundos menos desiguais e potentes de pulsão de vida.
[3] MAFFESOLI, Michel (2021). Ecosofia: uma ecologia para o nosso tempo. São Paulo: SESC EDIÇÕES.
[4] SANTOS, Antônio Bispo dos (2023). A Terra Dá, A Terra Quer. São Paulo: Ubu Editora/PISEAGRAMA.
[5] LAPOUJADE, David (2017). As Existências Mínimas. São Paulo: N-1 edições.
[6] RANCIÈRE, Jacques (2002). O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Tradução de Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica.
[7] MARTINS, Leda Maria (2021). Performances do Tempo Espiralar: poéticas do corpo-tela. -1ed.- Rio de Janeiro: Cobogó.
[8] LEPECKI, André (2010). Planos de composição. GREINER, Christine, ESPÍRITO SANTO Cristina, SOBRAL, Sônia (Org). Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança: Criações e Conexões. – São Paulo: Itaú Cultural, p. 13-20.
[9] Sinopse
“O Bípede perdeu os pelos, o cérebro, a razão. Ele gira e na gira faz do mundo a carne de seu corpo”.
Esta peça torce a ideia do animal humano, o Bípede Sem Pelo, e revela, assim, feito um corpo-que-dança-em-transe-que-dança-corpo, um evento estético que nos põe em continuidade com as coisas mundanas, em giros, saltos cruzamentos e amarrações, devolvendo-nos um saber próprio das manifestações culturais da terra.
FICHA TÉCNICA
Dança e Coreografia: Alexandre Américo | Direção: Pedro Vitor | Interlocução Cênica: Laura Figueiredo | Interlocução Coreográfica: Elisabete Finger | Cenografia: Ana Vieira e Jô Bomfim | Luz: Camila Tiago.
[10] DAMÁSIO, António. A estranha ordem das coisas : As origens biológicas dos sentimentos e da cultura ; tradução Laura Teixeira Motta. —1 a ed. — São Paulo : Companhia das Letras, 2018.
[11] BITTENCOURT, Adriana (2012). Imagens Como Acontecimentos: dispositivos do corpo, dispositivos da dança. Salvador: EDUFBA.
[12] GREINER, Christine; KATZ, Helena (2005). O Corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume.