Crítica – Atos Íntimos Contra o Embrutecimento | A (Ex)pressão do Urbano
Imagem – Liana Gesteira
Por Lucas Bebiano
Ator, Performer e Graduando da Licenciatura em Teatro (UFPE)
“Ancorado no conceito de programa performativo – que tem orientado minha prática como performer e a inter-relação que tenho desenvolvido entre arte da performance e mobilidade urbana – (…) sugiro que os planos de mobilidade funcionam como anti-programas performativos: compostos por enunciados de toda ordem (verbal, pictórica, arquitetônica…), controlam o transitar em sociedade, estipulam previamente preceitos de conduta e de utilização articulados com estratégias de poder sobre os corpos e, muitas vezes, inculcam noções de pertencimento e cuidado para camuflar os cerceamentos que esgotam nosso agir social, nossa performatividade”
Elilson (Por uma mobilidade Performativa), 2017
“Um ato íntimo contra o embrutecimento é aquilo que se faz ou se pode fazer em oposição àquilo que anestesia e violenta, a favor da sensação e da experiência. O ato íntimo dodecafônico é coletivo, parte do interior dos corpos e penetra o espaço. Propõe olhares diferentes para ambientes conhecidos, interações possíveis entre corpos e espaços, relações dilatadas, encontros”
Coletivo Teatro Dodecafônico (Mapa disponibilizado no Transborda Usina Teatral), 2019
No segundo semestre de 2019, a equipe do Sesc Santa Rita realizou mais uma edição do festival de teatro Transborda Usina Teatral, com a proposta de discutir em sua programação O Teatro e a Cidade: a (des)construção dos espaços cênicos/urbanos na cena contemporânea. Essa temática direcionou o público para a rua e para espaços alternativos, seja no caráter de mostra de espetáculos, performances ou intervenção urbana, ou no caráter discursivo e pedagógico, como nas oficinas, nos círculos de diálogos, nas mesas de conversas e na conferência.
Imerso durante esses cinco dias na temática da cidade, faço uma analogia com a pesquisa do artista Elilson e seu estudo a partir da noção do conceito por ele cunhado de anti-programas performativos, ou seja, de tudo aquilo que vai contra o pleno desenvolvimento de uma expressão performativa no urbano. Assim, este texto surge do interesse de investigar o encontro do (peço licença ao chamar) programa performativo[1] do Coletivo Teatro Dodecafônico (SP) com o anti-programa performativo que a cidade do Recife apresenta.
A intervenção urbana Atos íntimos contra o embrutecimento é realizada numa sexta-feira, dia 20 de setembro. Ela começa com a concentração dos artistas do coletivo na rua da Imperatriz na cidade do Recife. Um pouco apreensíveis pelo clima chuvoso, eles distribuem um mapa impresso que indica as sete etapas que os participantes (termo que utilizarei para me referir ao público do festival) irão percorrer.
Aparentando uma postura firme e segura, o grupo já se mostra íntimo da cidade, o que é fundamental para a condução e desenvolvimento da intervenção. Essa intimidade pode ser fruto de uma investigação característica do grupo, uma vez que eles costumam aplicar uma oficina nos locais onde serão realizadas as intervenções. Dessa forma, concretiza-se uma metodologia que desenvolve o mote da pesquisa junto aos oficineiros ao mesmo tempo que possibilita ao grupo conhecer o espaço que irá trabalhar. Nesse festival não foi diferente, eles desenvolveram, em três dias a oficina Errar é urbano: derivas e alguns atos íntimos contra o embrutecimento.
Uma das performers lembra aos participantes que em alguns momentos é benvinda a interação dos mesmos com o jogo proposto, em outros não: “vocês irão saber quando esses momentos chegarem” diz ela. Logo de início, todos que ali estavam fizeram um aglomerado para iniciar a primeira etapa do mapa, intitulada: caminhada lenta/manual de sobrevivência nas grandes cidades, que consiste na ação de caminhar devagar, o que desacelera o fluxo comum que a cidade apresenta.
Alguns integrantes do grupo participam da etapa com o público, os outros ficam ao lado com caixa de som e microfone; e uma batida de rap é tocada, seguida de diversas leituras e falas poéticas. Esse simples ato cria um contraespaço[2] na rua, que faz com que transeuntes e comerciantes parem e observem; essa qualidade[3] de contraespaço vai ser desenvolvida durante toda a intervenção. No meio da ação, a chuva engrossa e passa a compor a cena junto com o grupo, por conta disso algumas pessoas resolvem deixar o jogo, outras seguem firmes na imersão.
Na segunda etapa, corpo-arquitetura, a proposta é estabelecer uma relação plástica com o espaço arquitetônico em questão: a Ponte da Boa Vista. Os performers estabelecem o primeiro contato adquirindo um estado de corpo que não se diferencia do estado que a ponte apresenta, apenas um participante entra no jogo de primeira. Conforme a dinâmica vai se desenvolvendo, quase a metade dos participantes é contaminada e compõe a etapa junto ao grupo.
A qualidade estética e de presença gerada na etapa também é fruto da ação de duas performers que passam uma fita zebrada por entre os corpos e as colunas de ferro da ponte. A simbologia da fita zebrada indica demarcação e isolamento de espaço, um recurso escolhido pelo grupo que de alguma forma sinaliza o contraespaço criado que aqui está em pleno desenvolvimento. É nessa etapa que o caráter de jogo da intervenção se intensifica.
Aponto isso muito influenciado pelas reflexões levantadas em um dos círculos de diálogos da programação – Sobre a ótica das Poéticas Urbanas no Recife: relações entre a cidade, os corpos e o tempo (19.09). Nela, Giordano Castro (Magiluth) faz referência à cidade como um organismo vivo “e qualquer fato que você execute nesse organismo vai interferir na funcionalidade dele, como rir[4], andar na contramão: isso mexe com a estrutura da cidade”, diz ele.
Acredito que essa frase nos impulsiona a pensar uma possível performatividade que o urbano deflagra e como podemos jogar com ela. É possível que a noção de anti-programas performativos de Elilson denuncie essa perspectiva, e essa etapa desenvolvida pelo grupo também o faz, nos dando material que contribui com a possibilidade de podermos pensar o urbano, não como um sistema que bloqueia o desenvolvimento de programas performativos, mas como contribuinte de expressões cênicas.
Ao chegarmos na etapa seguinte, balada silenciosa, uma das performers orienta para que as pessoas que possuem fone de ouvido os utilizem. Os que não possuem o material, dividem o fone com algum participante que o tenha. A proposta era dançar pela Rua Nova com a música escolhida no seu celular até a Av. Guararapes, um trajeto que passa por dois pontos característicos da região, a Matriz Igreja Santo Antônio e a Praça do Diário.
Essa se torna a maior etapa, seja em sua duração de tempo e distância de percurso ou na passagem por um maior grupo de transeuntes, e talvez seja a etapa que mais cobre um estado de corpo e entrega dos participantes. Acredito que a interação de um objeto artístico com o espaço público é fundamental para caracterizar uma intervenção urbana. Também acredito que a qualidade dessa interação é dada não só pelo corpo intervencionista (nesse caso: performers e participantes), mas pela forma como o público reage; digo isso querendo apontar uma baixa do jogo e uma possível quebra do contraespaço construído nessa etapa.
Durante o seu desenvolvimento, lembrei-me de algumas reflexões abordadas na mesa de conversa que foi desenvolvida momentos antes da intervenção – Possibilidade de construção e novas experimentações cênicas em espaços artístico-pedagógicos. Nela, Maria Clara Camarotti (UFPE) diz três frases que são passiveis de analogia com o caso.
A primeira frase surge quando ela reflete sobre a ida precipitada de alguns artistas à rua, muitas vezes sem se articular plenamente com as questões: “Estou aberto? Eu quero me expressar ou me comunicar?”. Se pensarmos a rua como o lugar coadjuvante onde as pessoas nunca de fato estão presentes, apenas passam por ela para chegar ao trabalho, em casa, numa instituição, comércio etc, o simples ato de dançar, assim como o de caminhar devagar ou ficar parado parecem ações corporais que vão totalmente contra esse embrutecimento urbano.
Mas tive a impressão que o corpo intervencionista começou a se fechar, caindo mais para o campo da expressão do que da comunicação, sem querer diminuir todas as potencialidades que a expressão pode reverberar, mas, talvez, a possível passagem por este lugar tenha causado uma diminuição na qualidade de jogo, que estava sendo construída desde a primeira etapa.
Na segunda frase, Camarotti reflete sobre a violência urbana e como isso pode gerar implicações no diálogo entre grupos artísticos e público: “A gente vai criando os estereótipos da cidade e vai se fechando dentro desse conceito”. Ainda pensando na terceira etapa da intervenção, uma dicotomia é criada e o contraespaço construído se dissolve, talvez pela manutenção do telefone celular em público misturado com o imaginário coletivo dos participantes, que já conhecem a região da cidade e seu histórico de furtos. Uma das abordagens da heterotopologia (ciência que estuda os contraespaços e heterotopias) é o apontamento de algumas características vitais de um contraespaço, dentre elas sua não hegemonização.
A terceira frase é quando Camarotti reflete em torno das qualidades de presença que a rua pode proporcionar: “O risco é uma potencialidade para treinar presença, o risco é presença” e talvez um excesso de cuidado tenha comprometido por alguns minutos a experiência. Quando chegamos na Av. Guararapes são disponibilizadas garrafas d’água para os performers e participantes.
Não é o ato aparente de dar água aos participantes que me incomoda, mas o que esse ato influencia no desenvolvimento da intervenção e o que ele representa em um contexto onde uma série de discursos estão envolvidos, além dos discursos cênicos, como bonés, armações de óculos descoladas, mochilas e tênis, camisetas do SESC, crachás de produção, bolsas, pastas do evento, bloquinho de notas do evento, fotógrafos oficiais do evento e amadores. De forma que o contraespaço que está sendo construído pela intervenção vai se perdendo. É possível, que todos esses discursos tenham gerado um distanciamento entre o público e a cidade.
Certamente, que isso evidencia uma organização e cuidado do grupo para com os participantes. Essa atenção é vital para o trabalho na rua ainda mais em uma cidade recém apresentada ao grupo. Talvez o tensionamento maior esteja na ideia de programa performativo. Quando Eleonora Fabião desenvolve esse conceito[5], ela lança um olhar fixo ao que seria um enunciado da performance. Eu acredito que esse ideal reverbera de alguma forma em grande maioria das práticas cênicas que não se comprometem com a estrutura tradicional de caixa cênica no Brasil.
O próprio fato de se ter a elaboração de um mapa impresso sendo disponibilizado aos participantes já é uma referência indireta ao enunciado apontado por Fabião. Questiono, no entanto, a relevância dos mapas entregues pelo grupo, uma vez que o único momento que houve uma atenção maior dos participantes a ele foi no momento da entrega. Ficar com sede ou um pouco cansado durante uma intervenção, acredito que isso também faz parte do pacote da experiência. A contemplação e os possíveis incômodos podem andar juntos, afinal de contas, errar também é urbano.
A relação com os transeuntes começa a ficar intensa quando chegamos à Av. Guararapes e à Ponte Duarte Coelho. Trata-se de um trecho de grande circulação de transporte público, então, não estamos mais diante apenas de pessoas que param e observavam a intervenção, mas de pessoas que nos olham pelas janelas dos ônibus e fazem uma análise rápida do que está acontecendo. Com a mesma velocidade, lançam os comentários, como o principal deles: “Vá trabalhar”.
Não deu para ignorar esse comentário específico, lançado pejorativamente, e de tanto ouvi-lo acabei o positivando. Penso que quando um grupo se compromete com um trabalho que é contra o ritmo lógico da cidade e contra o ideal capitalista já acessado pelo senso comum, comentários como este são a prova de que o trabalho está dando certo. Por trás dos corpos que ordenam a um artista de rua ir trabalhar, existe uma porcentagem de embrutecimento cedendo a um ato íntimo.
Na etapa responda sim ou não, existe uma carga de intimidade que vai além da noção de cidade enquanto um organismo vivo, mas vai diretamente nos organismos vivos que compõem o urbano. Dois performers utilizando-se de um microfone sem fio, saem pela Av. Conde da Boa Vista separadamente. Os participantes têm a opção de escolher qual dos dois seguir. Eu sigo o performer masculino Hideo Kushiyam, que, munido de uma prancheta, realiza uma série de perguntas para os participantes, para as quais eles devem responder sim ou não.
Não demora muito tempo e ele começa a caminhar. As perguntas apresentam cunho político, social e pessoal; todas elas questionam o lugar de quem responde, no caso, o lugar dos homens que respondem, pois a maioria das perguntas tencionam as questões de gênero que levanta implicações sobre a masculinidade. Com a performer feminina, a lógica é a mesma, mas pautada ao feminino.
Kushiyam se reveza entre momentos de jogo com os participantes e com os transeuntes, nunca de forma aleatória ou mal cuidada. Ele consegue fisgar sempre algum homem que está disposto a jogar, disposto a interromper sua rápida passagem pela rua e parar, entrar no jogo e refletir minimamente sobre o seu lugar. De todas as perguntas feitas aos transeuntes destaco uma: “Você pertence a esta cidade?”. É preciso enfatizar o quanto esta etapa é funcional.
Dentro de uma percepção aparente, um homem com um microfone e uma prancheta abordando pessoas na rua para responder perguntas, é material suficiente para que os transeuntes pensem na abordagem como uma pegadinha, câmera escondida ou algum tipo de marketing de empresa. Mas isso não acontece, as pessoas realmente respondem às perguntas entrando na proposta do jogo. Nessa etapa, é possível perceber nitidamente o sujeito interventor e o sujeito que recebe a intervenção, contribuindo qualitativamente para a experiência.
Na última etapa cai que eu te cuido, o grupo nos afirma sua capacidade de dilatação do tempo/espaço. A caixa de som volta, estamos no quarteirão que iniciamos, um estimulo sonoro é utilizado. Se trata da música Turbulência de Sandra-X. Fico sabendo mais tarde que ela também faz parte do grupo. Ela não veio ao Recife, mas foi fundamental para a finalização da intervenção.
Sua música pousa no corpo dos perfomers, que se movimentam dentro de uma roda criada pelo público, na Rua Sete de Setembro. Os movimentos contemplam os níveis alto, médio e baixo. A música, os corpos, a palheta de cores das vestimentas, a maneira como um integrante do grupo se comunica com o outro, apenas com o olhar, no meio do caos da cidade. A sujeira da calçada não intimida a cena. Aliás, nada a intimida. Todas as etapas apontam para a possibilidade de fuga do embrutecimento que a cidade apresenta, permitindo, assim, a criação dos contraespaços, dos discursos não aparentes e das experiências, tudo isso fazendo da rua a matéria-prima do trabalho.
Até onde pude pensar, o que mais me interessa é a forma como o Coletivo Teatro Dodecafônico age sobre esse organismo vivo que é o urbano, como é dada a relação entre obra e cidade, obra e Recife. Trata-se de uma rara pesquisa de grupo que é extensa e imensurável. Para contribuir com a minha impressão sobre Atos íntimos contra o embrutecimento, acrescento a palavra final de uma das performers do grupo na conclusão da intervenção “Foi um acontecimento”.
Referências
ELILSON. Por uma mobilidade performativa. Rio de Janeiro: Editora Temporária/Rumos Itaú Cultural. 2017.
FABIÃO, Eleonora. Programa Performativo: O corpo em Experiência. ILINX Revista do LUME. n. 4, pg. 1-11, dez. 2013.
FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. São Paulo: n-1 edições. 2013.
COLETIVO TEATRO DODECAFÔNICO, 2019. Disponível AQUI. Acesso em 27 de set. de 2019.
Notas de Rodapé
[1] Compreende-se aqui programa performativo como o enunciado da performance, abordado por Eleonora Fabião. Segunda a autora, se trata de um conjunto de ações pensadas, articuladas e conceitualmente polidas a serem realizadas pelo artista, pelo público ou por ambos sem um ensaio prévio. Vide a segunda citação em Referências.
[2] O termo contraespaço poderia ser substituído pelo termo heterotopia. A preferência pelo primeiro vem da compreensão lúdica e imagética que o termo traz, julgando ser mais coerente com o contexto do trabalho do Coletivo Teatro Dodecafônico.
[3] O termo qualidade não é usado nesse texto enquanto medidor de valor negativo ou positivo de determinado sujeito ou objeto, mas, sim, enquanto um determinante da natureza de determinado sujeito ou objeto.
[4] Referência à performance Motim, do Coletivo Lugar Comum, onde o riso é matéria de criação. A referência da performance aparece com a fala de Liana Gesteira, que também compunha o círculo de diálogos representando o Coletivo.
[5] Sobretudo no texto Programa Performativo: O Corpo-Em-Experiência para a ILINX Revista do Lume em dezembro de 2013. Vide a segunda citação em Referências.