Crítica – Hamlet? Fragmentado | Trupe Artemanha e um novo espaço para cena na cidade
Imagem – Divulgação
Por Bruno Siqueira
Doutor em Letras (UFPE) e Professor da Licenciatura em Teatro (UFPE)
Recife ganhou mais um espaço para experimentações teatrais. Ufa! Um tanto quanto atrasado, venho saudar Luciano Santiago e sua Trupe Artemanha pela iniciativa de abrir o Galpão CITTA – Centro de Investigação Teatral Trupe Artemanha, na rua João Francisco Lisboa, 170, Várzea. Sim, Várzea, um dos bairros mais astrais de Recife. Além de funcionar como atual sede da trupe, o CITTA se propõe a ser um centro de investigações teatrais, que promoverá pesquisas, produções e montagens não somente do grupo, mas de outros que se interessem em compartilhar com ele o espaço.
A Trupe Artemanha é paulista em sua origem e conta com vinte e um anos de pesquisas, experimentos, montagens, formação de público, criação de festivais. A partir de 2013, alguns de seus integrantes passaram a fazer intercâmbio artístico em algumas cidades do Nordeste e, em 2016, Luciano Santiago, um dos fundadores da grupo, passou a fixar residência em Recife, inaugurando, com novos integrantes, uma nova fase da trupe.
No último final de semana, enfim, conheci o novo espaço, quando fui assistir ao experimento teatral Hamlet? Fragmentado. Recife está podendo testemunhar, neste momento, três produções que partem da obra de Shakespeare. Além desse experimento da trupe, temos Dinamarca, do grupo Magiluth (leiam a crítica AQUI), e o Shakesfood, peça escrita e dirigida por Diogenes D. Lima. Todas as três deglutem a dramaturgia shakespeariana e oferecem, cada qual a seu modo, experimentos cênicos e performativos recheados de conotações politicamente sérias e relevantes.
Em Hamlet? Fragmentado, Luciano Santiago dialoga não somente com o Hamlet de Shakespeare, mas também com o Hamlet-máquina de Heiner Müller. Do ponto de vista da dramaturgia, o experimento está mais próximo de Müller do que de Shakespeare. No texto do dramaturgo alemão, escrito em 1977, a tragédia shakespeariana é implodida e, com suas ruínas, Müller opera uma transformação textual, deslocando questões contidas na peça de 1600 para um cenário da Europa contemporânea, arrasada pelo fracasso de seu projeto de modernidade e pelos vários conflitos internos oriundos da devastação promovida pelo capitalismo tardio. Hamlet-máquina apresenta um discurso psicótico e bastante pessimista do mundo. Falo discurso psicótico no mesmo sentido que Tzvetan Todorov (Os Gêneros do Discurso) usa o termo: “se a psicose em geral é uma perturbação da relação entre o eu e a realidade exterior, o discurso psicótico será um discurso que fracassa em seu trabalho de evocação dessa realidade, dito de outro modo, em seu trabalho de referência”.
Quando esse discurso psicótico se insere no discurso dramático-teatral, desestabiliza a estrutura do drama tradicional, promove uma fragmentação da estrutura básica dos processos de pensamento, gerando, assim, efeitos de sentido reveladores do sujeito desse discurso. No texto fragmentado de Hamlet-máquina, a personagem deixa de ser dramática (dramatis personae). O dramaturgo alemão reduz consideravelmente a dimensão humana do príncipe dinamarquês e o transforma em máquina: de palavras, de cortes (Deleuze e Guattari), de desejos. O conflito não se estabelece mais pelo dialogo entre personagens, mas é revivido através da memória de Hamlet e de uma Ofélia lúcida, que toma para si o destino secular da mulher, como nos faz ver Ruth Rölh (O Teatro de Heiner Müller).
No roteiro dramatúrgico que Luciano Santiago nos oferece em seu Hamlet? Fragmentado, a personagem Hamlet tende mais para o dramático, mesmo havendo o dramaturgo trabalhado com rupturas, estranhamentos e técnicas de distanciamento. Daniel Gomes, que atua como Hamlet, entrega-se totalmente à crise existencial de sua personagem, mantendo uma linha de interpretação, do início ao fim, dramaticamente coerente. Por sua vez, Damyeres Barbosa, que faz Ofélia, carrega no matiz dramático, mas aparece na cena em momentos intermitentes, quase como projeções da mente de Hamlet. Ou seja, a própria dramaturgia consegue estabelecer a ruptura com o dramático na composição dos atos da personagem Ofélia, mas ainda titubeia na construção da personagem Hamlet, confundindo um pouco a recepção da cena ao oscilar entre o dramático, o melodramático e o épico brechtiano. Afinal, o que pretende esse Hamlet? Fragmentado? Apresentar uma personagem (Hamlet) e sua crise existencial? Tocar o espectador em suas emoções epidérmicas, a exemplo do melodrama? Brincar com as velhas poéticas teatrais e, com essa brincadeira, chamar atenção para questões relevantes do mundo contemporâneo?
Na roda de conversa que se formou após o espetáculo, ficou claro para mim que o objetivo de Luciano Santiago era investir no antidramático. Na minha compreensão, se esse era o objetivo, o espetáculo poderia investir mais ainda nas rupturas dramáticas, não em número, mas em qualidade: brincar mais com a personagem-título; experimentar mais junto aos atores, com exercícios de biomecânica corpórea, das técnicas de bufão, de teatro de rua. Vale salientar que todos esses elementos já se encontram presentes na cena; falta, a meu ver, potencializá-los, de forma a ficarem mais claros na economia do discurso cênico.
Essas questões de ordem estética podem parecer meramente formais, se pudéssemos separar forma de conteúdo. Todavia, essa divisão cartesiana há muito já foi superada pelo pensamento moderno tardio e, hoje, se torna insustentável. A forma é carregada de conteúdo e o conteúdo só pode advir da forma. Apesar dos ruídos na comunicação estética que a cena estabeleceu comigo, pude flagrar o viés político que Hamlet? Fragmentado nos quis passar. Heiner Müller começa seu Hamlet-máquina com o seguinte texto: “Eu era Hamlet. Estava parado à beira-mar e falava BLA-BLA com a ressaca. Atrás de mim, as ruínas da Europa. (…) Eu me deitei no caixão e ouvi o mundo girar no compasso da putrefação”. Diante do atual quadro político em que estamos vivendo, o Hamlet que Daniel Gomes desempenhava parecia estar nos dizendo “Atrás de mim, as ruínas do Brasil”, de um Brasil putrefado, apodrecido pela corrupção e pelos crimes de colarinho branco. Assumir cenicamente esse discurso político é um dos méritos do espetáculo.
Vale destaque, também, a criatividade do grupo para a realização do trabalho, com tão poucos recursos que o espaço ainda está podendo oferecer. O galpão tem um largo espaço para as apresentações cênicas e um outro, com balcão, onde podemos comprar bebidas. Só. A iluminação do Hamlet? Fragmentado é muito bem improvisada; o cenário se vale da precariedade do espaço: delimitado por velas, contém, em seu interior, dois montículos de terra e uma pá. A partir disso, Luciano Santiago consegue criar para o espetáculo algumas imagens poéticas de forte beleza, nos lembrando que, para fazer teatro, basta uma boa ideia e artistas que acreditam no que fazem. A larga experiência do diretor com o teatro de rua certamente contribuiu para a criação de formas artísticas quando as condições materiais não se mostram tão vantajosas.
O Galpão CITTA despontou em terras recifenses com muitas promessas. Fiquei bastante entusiasmado não somente com a existência de mais um espaço na cidade para as artes cênicas, mas por ter tomado conhecimento dos projetos estético-políticos da Trupe Artemanha. Nossa cartografia teatral é diversificada e a Trupe Artemanha só vem a somar com sua experiência. Que seja este um percurso compensador e próspero para o grupo e para o público nosso, ávido de novas experiências.