Crítica – Maria que virou Jonas ou A força da imaginação| Corpo em disputa: teatro queer subverte papéis de gênero em tom político
Imagens – Wellington Dantas
Por Vinícius Vieira
Jornalista, Ator e Professor
O teatro não poderia deixar de problematizar a transexualidade após um ano como 2015. Basta relembrar apenas um episódio: a violência vivida pela atriz transexual Viviany Beleboni na Parada Gay de São Paulo após realizar performance mimetizando a crucificação. A imagem era uma metáfora para denunciar os casos de violência vividos pela população LGBT, no Brasil. Mas Viviany pagou um preço alto por sair da margem e afrontar o silenciamento pondo “a cara no sol”, sem aceitar as operações impiedosas de quem a enxerga como abjeto. Foi vítima de agressão física e psicológica. Mas nem o sofrimento dela, nem o de tantas outras pessoas parou por aí.
O país que aguarda ansioso o reinado de Momo para festejar tem motivos de sobra para ficar deprimido. Quase 10 mil (9.982) denúncias de violação de direitos humanos relacionados à comunidade LGBT foram registradas pelo governo federal no 2° Relatório Sobre Violência Homofóbica de 2012, pesquisa empreendida pela Secretaria dos Direitos Humanos. Já no ano anterior, esse número não chegou a sete mil. Ao todo, foram 6.809, o que demonstra um crescimento preocupante.
Você deve estar pensando que, erroneamente, alguém deve ter copiado e colado uma matéria do caderno de polícia na sessão de crítica teatral do Quarta Parede. Engano. Começar o texto dessa forma foi uma escolha proposital para que você sentisse a carga política, de insatisfação e denúncia, do espetáculo Maria que virou Jonas ou A força da imaginação, assinado pela diretora e iluminadora Cibele Forjaz. A peça foi levada ao palco do Teatro Hermilo Borba Filho, no sábado (16) e domingo (17), como parte da programação do 22° Janeiro de Grandes Espetáculos.
A obra é uma recriação cênica do caso de Germain Garnier, jovem morador da cidade de Vitry, na França do século XVI. Até seus 15 anos, ele viveu como Marie e passou a ser aceito como homem após um pênis sair do seu ventre, consequência do esforço para pular uma vala. Essa história foi apresentada pelo filósofo Michel de Montaigne em seu ensaio Da força da imaginação e serviu como ponto inicial para a Cia. Livre (SP) abordar a emergente temática da transformação do corpo. A encenação alimenta-se da Teoria Queer para discutir identidade de gênero e sexualidade, mostrando o ser humano como dono de uma subjetividade complexa, muito além daquilo que o discurso heteronormativo pretende determinar. Em um jogo metateatral, as personagens vão se desconstruindo ao longo da peça, borrando a intocável fronteira que classifica o sujeito como homem ou mulher. A interpretação irônica, carregada de comicidade, subverte a performance esperada para cada gênero, mostrando-as como forjadas social e historicamente.
Ao entrar no Hermilo, nos deparamos com um círculo no centro do espaço cênico, feito de fita branca. Ele adquire status de buraco graças a convenção teatral e divide a plateia, posta de frente uma para outra, formando um palco-corredor. Quem estaria disposto a rasgar essa divisão e partir para o outro lado? Ou então ficar no entre-lugar habitado pelos atores? A disposição do espaço possibilita que nos olhemos uns para os outros para confrontar a nossa cultura, a consequência de nossas escolhas, nosso conformismo letárgico. Tudo isso cara a cara. Em vários momentos da peça a “quarta parede” é quebrada para levar o público à reflexão em um bate papo direto. Nessa obra, ninguém pode fazer vista grossa, fingir que não é consigo. É preciso decidir, como Aquele que diz sim e aquele que diz não.
Logo no início, uma pessoa da plateia é convocada para sortear uma carta que determinará se o ator (Edgar Castro) fará a personagem “Ele” e a atriz (Lúcia Romano) o papel de “Ela”, ou o contrário. De forma extremamente assertiva, Forjaz desafia seus atores a estarem preparados para viver papéis masculinos e femininos, um exercício e tanto para quem é profissional da cena. A solução interpretativa dialoga com o discurso da obra e revela o quão fluidos e instáveis podem ser nossos desejos, aquilo que nos faz imaginar quem somos, como somos e no que podemos nos transformar. O espetáculo apresenta uma família tradicional que se desconstrói após a personagem Ela pular um buraco e desencadear uma série de transformações no próprio corpo, fazendo-a cruzar a fronteira do gênero e vivenciar a masculinidade. Uma masculinidade, por sinal, longe das classificações tradicionalistas. Ela, agora Ele, apresenta-se na noite, transa com outros homens, rompe com as convenções não apenas com o seu corpo, mas com seus atos transgressores.
O buraco, como muitos poderiam pensar, não é um lugar de escuridão. Ele é luz e ilumina as possibilidades de ser que as redes de poder tentam suplantar. Os sistemas de vigilância e controle estão por todos os lados, nas instituições, mas também em nós. No espetáculo, o professor, nunca visto pelas personagens, mas apenas enunciado em narrativas. É posto para nos mostrar o quanto a educação também é produtora de um sistema perverso, criador dos corpos que importam. Utilizando-se da linguagem, ela hierarquiza e classifica os seres em consonância com a heteronormatividade compulsória, vista como “natural”. Quem não se enquadra, é encarado como desviante. Por isso, é preciso vigiar. Ainda que na ausência, as palavras do “querido mestre” continuam a surtir efeito promovendo automonitoramento nas personagens, mesmo após o término do período escolar.
Mas no evoluir da cena, o casal consegue vivenciar o prazer além do véu da ignorância, desloca-se do centro para ocupar a margem em uma relação sustentada, sobretudo, pelo amor. O que menos importa para eles são as referências físicas. Ser gente é o fator imperativo para despertar a vontade de morar no outro, nada mais. Porém, atingir esse patamar não foi fácil. O corpo mostrou-se em disputa no espaço, sofrendo contorções e espasmos histriônicos, evidenciando o possível mal estar que o indivíduo pode sentir por não responder aos parâmetros exigidos. Nesse processo, a língua também tornou-se insuficiente em suas classificações para comportar a subjetividade do ser humano. A confusão quanto ao uso dos pronomes Ele e Ela foi explorado comicamente como se quisesse fazer a plateia rir dos próprios códigos e regras “intocáveis”.
A inteligente encenação de Forjaz escolhe promover efeitos de distanciamento para suscitar no espectador o pensamento crítico acerca das questões de gênero. Há prazer estético no espetáculo, mas ele não é fundamentado no sentimento de pena ou de medo a partir dos acontecimentos vividos pelas personagens, mas pela fruição crítica no qual convoca o espectador a analisar a vida como ela está, confrontando-a com aquilo que ele quer que seja. Com músicas cantadas ao vivo, curvas líricas, textos proferidos no microfone, e uma sonoplastia que comenta a situação das personagens, é promovida a quebra do encadeamento dramático na encenação. Este é um teatro que reflete os interesses de sua época com toda carga política de quem não se conforma com a sombria lógica de um sistema excludente; E faz da arte local de ebulição para a mudança. Por que se enquadrar? Por que casar? Por que ‘tem’ que ter filhos? Por que se vestir dessa ou daquela maneira? Além de tudo que foi colocado, a peça também faz ecoar esses questionamentos, referindo-se a casos de pessoas trans, que optam pela cirurgia de resignação sexual não só para ficar bem com o próprio corpo, mas como se, ao efetuar a transformação, quisessem se enquadrar a norma para fugir do preconceito, retirar-se da localização de abjeto imposta pela sociedade.
Maria que virou Jonas ou a força da imaginação, nos lembra, com tom sarcástico, que o teatro não é o lugar do buraco, mas é o próprio buraco, no qual a miscelânea de indivíduos podem simplesmente ser e estar. Porque o jogo cênico é sempre o lugar das fantasias, da transfiguração das interdições em campo fértil das possibilidades. Não há arte sem liberdade. E quão entusiasmante é encontrar encenações livres. Aliás como as produções pernambucanas também têm mostrado ser: RisoFlora – A história de uma drag queen, da Chaplin Cia de Repertorio; Ópera (2010), do Coletivo Angu de Teatro; Solo Diva e Complexo de Cumbuca (2014), do Teatro de Fronteira, os quais revelam e reverberam a beleza da subversão.
P.S.: Escrevi esta crítica logo após saber que as travestis Ana Flor Fernandes e Amanda Palha (sendo esta 1° lugar em Serviço Social), foram aprovadas no vestibular e vão estudar na UFPE. Este texto é dedicado a essas meninas que transformaram a dor em força para ressignificar a própria trajetória. Bravo!