Crítica – O Açougueiro | Carne, amor e preconceito
Imagem – Lucas Emanuel
Por André Ferraz
Ator, Diretor, Pesquisador Teatral e Doutorando em Artes da Cena (UFMG)
O espetáculo pernambucano O Açougueiro, com texto e direção de Samuel Santos, realiza temporada no Teatro Poeira, no Rio de Janeiro, até 14 de dezembro de 2016, sempre às terças e quartas, às 21h. O Açougueiro é, originalmente, um texto curto que faz parte de um conjunto de textos denominado Desatinos. No entanto, o ator Alexandre Guimarães resolveu leva-lo à cena como texto único do espetáculo (que tem quase uma hora de duração), convidando o próprio autor, Samuel Santos, para dirigi-lo. Assim, o que vemos no palco é uma encenação que trabalha as ambientações emocionais de maneira muito intensa, valendo-se do meticuloso trabalho de ação física (corpo/voz) de Guimarães, único ator em cena que não só constrói os vários personagens da história do açougueiro/boi Antônio, mas também garante a visualização do que não podemos enxergar.
A peça nos apresenta Antônio, um homem nascido e crescido no sertão nordestino, em meio à boiada e ao clima seco e quente. Cresceu sem poder comer muita carne – alimento típico de pessoas mais abastadas –, por isso se torna açougueiro. Conhece então Nicinha, prostituta da região e por ela se apaixona perdidamente. Com o tempo, trabalha tanto que consegue abrir o seu próprio açougue, pedindo a mão de Nicinha em casamento. Com isso, inicia-se toda uma série de conflitos que escancaram uma sociedade baseada em preconceitos e métodos de controle social, lembrando inclusive, os níveis apresentados na Escala de Allport (do livro A Natureza do Preconceito, de Gordon Allport, publicado em 1954), que vai desde piadas com a questão da prostituição e fidelidade no casamento (Antilocução); pessoas que evitam o contato com Antônio após o casamento, resumindo-se a apenas comprar a carne (Esquiva); negação de oportunidade e acesso a serviços a Nicinha, pois ninguém quer vender nada a ela (Discriminação). Os dois últimos níveis de preconceito tem força de spoiler (informações que podem entregar o final): Ataque Físico e Extermínio!
Sim, não se trata de uma peça que fala apenas do sertão pernambucano nem de um período específico. Ela trata de pessoas que buscam felicidades simples (se é que existem) e se veem em uma sociedade castradora, controladora e moralista. Nada mais atual, não é? Assim, com esse pano de fundo, a encenação de Samuel Santos utiliza sons típicos do universo dos vaqueiros do sertão pernambucano, que traz desde o som quase ininterrupto do sino do gado preso ao pescoço do ator (mesclando a energia animal e humana em toda encenação) até os aboios, cantos com poucas palavras, típicos dos vaqueiros que conduzem o gado pelas pastagens sertanejas. Some-se a isso uma iluminação cuidadosa e um cenário ao mesmo tempo minimalista, porém muito potente, pois lembra um cercado de boi, como se o pobre Antônio não tivesse saída.
Por fim, fica a felicidade de ver um ator que busca no “teatro físico” muito mais do que uma vitrine de virtuosidade e visceralidades. A atuação de Alexandre Guimarães é, antes de tudo, um retorno aos velhos contadores de história do sertão nordestino, que buscam na ação vocal e corporal a riqueza de detalhes da história e de tudo que não podemos enxergar com olhos, mas sim com alma.