Um quebra-cabeça da memória | Entrevista – Márcio Bastos
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Imagem – Marlon Diego/Divulgação
Lançado em outubro de 2023, durante a Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, o livro Pernalonga: Uma sinfonia inacabada, escrito pelo jornalista Márcio Bastos e editado pela CEPE, trata-se de uma biografia do icônico ator pernambucano Antonio Roberto de Lira França, conhecido como Pernalonga.
O livro retrata a vida e a trajetória artística de uma figura icônica e pioneira do teatro pernambucano e da comunidade LGBTQIA+, resgatando memórias de um período vibrante e revolucionário e destacando a importância cultural e política do Vivencial, grupo teatral do qual Pernalonga fez parte. A obra explora as dificuldades e conquistas do artista, incluindo sua luta contra o HIV/AIDS e a resistência contra o preconceito através de entrevistas e relatos emocionantes, oferecendo um olhar profundo sobre a vida de Pernalonga e celebrando sua contribuição única e deixando um legado inspirador para as futuras gerações.
Para abordar um pouco sobre o processo de pesquisa e escrita do livro, o jornalista e autor Márcio Bastos conversou com o co-editor-chefe do Quarta Parede, Márcio Andrade.
Márcio, antes de tudo, queria começar perguntando como foi seu primeiro encontro com a história do Vivencial e de Pernalonga.
Entrei no jornalismo em 2011 como estagiário na Folha de Pernambuco, no Caderno de Cultura. Logo que comecei, o setorista de teatro migrou para a literatura, e fui encarregado de cuidar do teatro. Em 2011, ainda na faculdade, aceitei a tarefa e comecei a me aprofundar no mundo do teatro.
Pouco tempo depois, ocorreu uma homenagem ao grupo Vivencial. Não lembro exatamente, mas acho que foi em 2013, em comemoração aos 40 anos do Vivencial, foi lançado o livro “Transgressão em Três Atos, nos Abismos do Vivencial”, de Stella Maris Saldanha, Alexandre Figueirôa e Cláudio Bezerra. Esse foi meu primeiro contato com o Vivencial, e me aprofundei na história por conta de uma matéria para o Festival Recife de Teatro Nacional.
Depois, veio o filme Tatuagem, que também faz referência ao Vivencial. Conversando com Guilherme Coelho, fundador do Vivencial, ele explicou que muitos personagens do filme eram baseados em pessoas reais, mas com algumas liberdades criativas. Ao longo da minha carreira, o Vivencial continuou aparecendo. Quando Henrique Celiberti retomou a ideia de um cabaré, fez menções ao Vivencial. O Prêmio Pernalonga de Teatro também trouxe o grupo de volta ao meu radar. Cobri esses eventos, mas de uma maneira jornalística e distanciada.
Em 2022, recebi um convite da Editora CEPE para escrever um livro sobre Pernalonga para a coleção Perfis. Eles achavam que eu já teria muito material reunido, mas não era o caso. Tive que coletar muitas informações em pouco tempo, entre julho e outubro. Foi desafiador, pois havia muitas informações desencontradas e a memória das pessoas, após 20 anos, estava nebulosa.
Meu contato inicial com o Vivencial e Pernalonga foi como jornalista, mas o livro me levou a uma imersão fascinante na reconstrução de uma época. O Vivencial não está suspenso no tempo e no espaço, mas é fruto de uma época. As tentativas de reviver o Vivencial não capturam sua complexidade, pois era uma experiência revolucionária, ainda pouco apreciada na historiografia do teatro brasileiro. Talvez por ser um grupo do Nordeste, feito por pessoas LGBTQIA+, ele ainda não ocupa o lugar que acredito que deveria.
Como foi o processo de pesquisa e investigação dos documentos em arquivos públicos?
Tive muita sorte, pois a pesquisa de Alexandre Figueirôa, Cláudio Bezerra e Stella Maris Saldanha foi crucial, pois eles realizaram um trabalho acadêmico com muitas referências. Isso facilitou meu processo, pois quando precisei pesquisar, já tinha algumas direções, usando esse livro como uma bíblia. Pesquisando, percebi que, nos últimos dez anos, muitas pesquisas acadêmicas foram feitas sobre o Vivencial, abordando sexualidade, repressão, ditadura e outros temas. Diversos pesquisadores se interessaram pelo grupo, pois ele oferece um campo vasto de estudo em áreas como sexualidade, gênero, raça e, claro, teatro.
Inicialmente, mergulhei na pesquisa documental e visitei diversas vezes ao arquivo público. Minha experiência como jornalista foi essencial para as entrevistas. Conversei com muitas pessoas, perguntando sobre Pernalonga. Algumas entrevistas não renderam diretamente, mas levaram a outras pessoas e informações e as redes sociais também ajudaram a encontrar contatos. A ideia do livro era um perfil biográfico, sem a obrigação de cobrir todos os detalhes da vida de Pernalonga. Embora eu não precisasse seguir uma cronologia, queria abordar mais do que apenas a experiência dele no Vivencial e sua morte e um desafio para essa tarefa era que muitas informações sobre sua vida não estavam facilmente acessíveis.
Tive que buscar em hemerotecas, arquivos públicos e entrevistas. Descobri, por exemplo, que perto do fim da vida, Pernalonga pensava em montar uma peça com hip-hop e informações como esta vieram através de conversas com pessoas próximas a ele – e não através da imprensa. No início do projeto, decidi mostrar um pouco da pessoa por trás do artista e do mito. Pernalonga tinha uma personalidade complexa: destemido e confrontador, mas com medos banais. Ele era revolucionário, mas às vezes reacionário. Essa dualidade foi um desafio de capturar.
Ao longo da pesquisa, desenvolvi, em certa medida, uma relação íntima com ele: às vezes, queria protegê-lo; outras, ficava indignado com suas atitudes. Foi importante registrar sua participação em peças e eventos, mostrando também a precariedade de sua vida, como, por exemplo, um momentom em que ele não pôde participar de uma montagem do Vivencial porque não tinha dinheiro para a passagem. A partir de histórias como essa, espero que o livro sirva como uma base sólida para futuros estudos sobre Pernalonga, pois, mesmo após o lançamento, novas histórias continuam a surgir. Esse livro é apenas o início dos estudos sobre ele, e espero que outras pessoas também se aprofundem, trazendo à tona mais peças, filmes, livros, e pesquisas sobre Pernalonga.
Na sua trajetória como jornalista, como era seu contato e apreço por livros biográficos? Tem algum ou alguns que marcaram seu repertório e te influenciaram na escrita de Pernalonga?
Um dos livros que mais amo e que foi uma referência para mim no jornalismo é “A Mulher Calada,” de Janet Malcolm. Esse livro trata das biografias de Sylvia Plath e discute como existem várias versões da vida dela, cheias de contradições. Janet Malcolm aborda como a morte de Sylvia Plath aos 30 anos cristalizou certas narrativas sobre ela, que, de outra forma, poderiam ter sido elaboradas ou processadas ao longo do tempo. Isso me marcou profundamente, especialmente as disputas familiares sobre o que podia ou não ser falado sobre Plath. Li esse livro ainda na faculdade e ele teve um impacto duradouro. Eu não era um grande leitor de biografias, mas sempre adorei perfis, como aqueles publicados em veículos como New Yorker, Piauí e The Guardian. Gostava de ver jornalistas se debruçando sobre personagens, seja por uma tarde, uma semana, ou mais. Na faculdade, textos de Gay Talese e outras grandes referências me encantaram. Inclusive, passei a me interessar mais por biografias depois de escrever meu próprio livro.
A relação com a família de Pernalonga foi crucial. Rosângela, a irmã mais ativa na preservação da memória dele, inicialmente teve resistências, principalmente por medo de exploração da história do irmão. Por exemplo, ela não gostava das referências que alguns autores faziam a Pernalonga usando palavra “marginal”, por exemplo, algo que, para nós das artes, é natural, mas para ela tinha uma conotação dolorosa. Trabalhei para mostrar que eu queria celebrar Pernalonga, não sensacionalizar. Rosângela me apresentou a um Pernalonga que ninguém mais poderia: um Antônio Roberto querido pela família, que tentava não trazer suas subversões para o lar. Essa visão da família foi essencial, oferecendo detalhes que só ela poderia compartilhar. Por exemplo, ele mentia sobre ter parado de usar drogas após o diagnóstico de HIV para proteger a família.
Convencer a família de minhas intenções foi um processo delicado, mas hoje temos uma ótima relação. Rosângela entendeu a importância de contar a história completa de Pernalonga, mostrando suas múltiplas facetas além da imagem do Vivencial. Escrever sobre Pernalonga me fez reconhecer as múltiplas camadas do meu biografado e acredito que minha experiência com perfis jornalísticos deu uma leveza ao processo, ajudando-me a navegar por essas variadas e contraditórias dimensões de Pernalonga.
Eu sentia uma grande responsabilidade, pensava ‘Meu Deus, eu não conhecia ele, não sabia sobre detalhes da sua história’. Há poucos registros em vídeo, mas tem os filmes de Jomard Muniz de Brito, que foram ótimos para ouvir a voz de Pernalonga e ver seus movimentos em cena. Porém, essa falta de conhecimento direto me causava crises de dúvida: “Será que estou retratando ele corretamente? Capturando sua essência?”. Isso muitas vezes me travava, pois eu queria honrar a memória dele. Não endeusá-lo, mas garantir que sua presença fosse sentida no livro. Durante o processo, era difícil saber se estava conseguindo isso. Mas quando o livro foi lançado, várias pessoas que o conheceram vieram até mim, emocionadas, dizendo que viram seu amigo, seu irmão, no texto. Isso foi a maior realização para mim, pois significava que ele estava presente no livro de uma forma autêntica.
Eu também não queria que o livro fosse apenas uma lista de fatos. Quis contextualizar Pernalonga no ambiente em que vivia, nas músicas que ouvia, na sua paixão pelo carnaval e no amor por Paulinho. Muitas pessoas achavam que ele era uma mulher trans ou travesti, mas ele não se identificava assim. Talvez hoje, com mais entendimento sobre questões de gênero e sexualidade, ele se colocasse de outra forma. Ele exerceu muita fluidez de gênero, respondendo de diferentes maneiras sobre ser homem ou mulher, e era chamado de “a Perna” de forma afetuosa por alguns. Eu queria que o livro mostrasse que havia uma pessoa ali, não apenas dados e datas, mas que houvesse uma alma naquelas páginas.
Em relação ao contato com familiares e amigos de Pernalonga, teve algum momento que te marcou mais?
A maioria das entrevistas foi feita à distância, principalmente por telefone, devido à disponibilidade das pessoas, muitas delas idosas. Contudo, alguns encontros foram presenciais. O encontro virtual, e mais tarde pessoal, com Guilherme Coelho foi crucial, pois ele é uma figura fundamental para o teatro brasileiro, especialmente no contexto do Vivencial. Outros encontros importantes foram com Américo Barreto, Fábio Coelho, Suzana Costa e Ivonete Melo, que ajudaram a montar um quebra-cabeças da memória de um tempo e das pessoas que construíram um legado enorme, influenciando o teatro pernambucano até hoje.
Um encontro marcante foi com João Valença, que além de questões relacionadas ao HIV, compartilhou cartas de Paulinho para Pernalonga. Isso foi emocionante e impactante. Ana Brito, médica infectologista que ajudou muito Pernalonga, também foi uma fonte importante. Encontrei-a novamente no lançamento do livro em São Paulo, onde ela deu um depoimento lindo.
Esses encontros me permitiram entrar em contato com outras histórias maravilhosas, enriquecendo meu repertório como jornalista e pessoa. A experiência da escuta foi refinada, pois, ao contrário de uma matéria, eu tinha um projeto maior, um livro para encorpar com depoimentos, já que os documentos eram insuficientes.
Histórias variadas também apareceram, como a música de Di Melo chamada Pernalonga, que descobri não estar relacionada a ele, mas esclareceu dúvidas. Cada encontro, seja físico, por telefone ou com um documento, foi significativo. O título do livro, “A Sinfonia Inacabada”, veio de um espetáculo de Pernalonga com Paulinho, e uma nota de Valdir Coutinho sobre uma estreia sem público, me emocionou profundamente. Esses momentos ajudaram a criar uma relação afetiva com Pernalonga, pensando em sua vida interrompida tragicamente e sua dedicação ao teatro. Esses ecos do passado me interessavam e davam vida ao personagem.
Desde o lançamento, você participou de variados eventos relacionados ao livro e também à celebração dos 50 anos do Vivencial. Como essas celebrações perpetuam e atualizam para você a memória em torno do teatro feito por Pernalonga e pelo grupo?
Amigo, isso é muito emocionante para mim. Esse livro me proporcionou ver como outras pessoas, especialmente da época de Pernalonga, se sentiram contempladas ao ver a história dele contada. Elas pensam: “Minha história também podia ser contada, a do meu amigo também”. Fico feliz em ver a alegria delas, pois se veem um pouco no livro também. Isso não é só sobre a falta de memória no teatro e nas artes em geral, mas sobre como muitas vidas passam e são esquecidas.
O Vivencial, por exemplo, foi muito mencionado na imprensa, era um fenômeno. Contudo, após os anos 80, foi esquecido, sendo resgatado apenas nos anos 90 por pesquisas como as de Rodrigo Dourado e Stella Maris. Se essas pessoas não tivessem tomado a iniciativa, o Vivencial teria sido apagado. Lançar o livro me trouxe satisfação ao ver pessoas entrando em contato com a história de Pernalonga. Muitos me dizem: “Eu não conhecia Pernalonga, que massa.” Agradeço à CEPE pelo apoio. Tenho feito um trabalho de formiguinha, divulgando o livro para outros pesquisadores de memória LGBT+. Não busco um best-seller, mas sim perpetuar essa memória.
Se Pernalonga fosse do Sudeste, seria um dos maiores ícones LGBTQIA+ do país. Sua história de resistência nos palcos e na vida, especialmente na questão do HIV/AIDS, é fascinante. Interessa-me que essa memória se perpetue, e as trocas com outros pesquisadores e pessoas de teatro têm sido gratificantes e emocionantes. A comemoração dos 50 anos do Vivencial surgiu de uma ideia simples e cresceu até se tornar uma grande celebração. Foi um processo estressante, mas deu certo lindamente. Isso me fez entender melhor como o Vivencial trabalhava: de maneira caótica e colaborativa. A festa reuniu mais de 300 pessoas, que se reencontraram e compartilharam memórias. Esse resultado é um reflexo do que o livro ativa: memória e encontros.
Há movimentações para montar peças e homenagens ao Vivencial. Quero que eles recebam o reconhecimento merecido, pois a experiência deles foi revolucionária. Em plena ditadura militar, eles subvertiam politicamente com suas vivências, corpos, festas, desejos, e colocavam pessoas trans em cena. Essa ousadia muitas vezes desconfortava até os militantes de esquerda. Espero que essa memória seja resgatada não como algo preso no passado, mas como uma experiência revolucionária que ainda inspira. O Vivencial é valorizado pelo grupo de teatro da UFPE e espero que a história do teatro o reconheça mais como um grupo incrível e tensionador de muitas questões.