Crítica – Na Beira | Ou a magia de um arquivo orgânico
Imagens – Ricardo Maciel
Por Luana Felix
Graduanda em Licenciatura em Teatro (UFPE)
Nascida do desejo de movimentar a cena teatral alternativa do Recife, a Mostra Outubro ou Nada de Teatro surge da articulação de grupos, companhias, coletivos e produtores independentes que almejam superar o desprezo das atuais políticas públicas culturais, questionar a ausência de pautas nos teatros da cidade e a situação de abandono em que esses equipamentos se encontram, e principalmente, romper com o imaginário social de que Recife não tem teatro.
Cerca de 50 apresentações recheiam 13 espaços culturais alternativos, do dia 03 ao dia 29 de outubro. A coordenação geral da Mostra é de Rodrigo Dourado, professor de Teatro da Universidade Federal de Pernambuco, fundador e membro do grupo Teatro de Fronteira e agitador cultural da cidade do Recife.
A peça Na Beira abriu a maratona de espetáculos, no dia 3 de outubro (segunda-feira) às 20h no espaço O Poste Soluções Luminosas. Dirigida por Rodrigo Dourado, Na Beira é mais uma produção do grupo Teatro de Fronteira, que desde 2012 mantém em sua pesquisa experimentos com o Biodrama¸ um tipo de teatro documental que explora a ideia de que toda pessoa é um arquivo orgânico e que as suas histórias de vida podem ser material para uma experiência cênica.
O espetáculo protagonizado por Plínio Maciel é uma alegoria das relações familiares pernambucanas, que são profundamente marcadas pelo aspecto migratório e, consequentemente, pelo furor dos reencontros de família. Costumo relativizar Na Beira com aquele momento em que sua mãe está mostrando o álbum de fotos da sua avó a um parente distante, e relatando a vida de todos, um a um, quem foi e qual destino tomou.
A dramaturgia do espetáculo é flexível, coletiva e improvisada. Embora seja clara a presença de um roteiro, as histórias são costuradas através da intervenção do espectador, que, ao escolher os envelopes, direciona o trajeto da peça. Os envelopes são compostos por fotografias que se agrupam em torno de uma mesma história. Esse tipo de construção dramatúrgica é bem característica das produções autobiográficas, uma vez que a liberdade e a propriedade de contar a sua própria história é a potência primária do desejo de torná-la cênica.
Excepcionalmente nesse dia, por estar em um espaço alternativo, toda a parte técnica estava às vistas, o que ajudava a criar uma espécie de cumplicidade involuntária entre o ator e a plateia. Em uma das laterais do espaço uma toalha de mesa branca com bordados é suspensa cobrindo a parede. Fotografias, bata de formatura, calendário, fantasia de carnaval, roupa de bebê, tudo posto sobre a nova parede branca de tecido. Podia-se descrever o cenário como um registro imóvel de realidade, um auto-retrato, uma maneira de colocar na mesma linha a cabeça, o olho e o coração.
À medida que os espectadores vão se acomodando é servido um caldinho preparado pelo ator ao som do hino da cidade de Surubim. O caldinho volta em outros momentos da peça acompanhado de cerveja e pagode, a intervenção funciona como um momento de quebra entre um envelope (história) e outro, onde o ator pode beber uma água e reorganizar os elementos de cena.
Plínio Maciel é, sem dúvida, toda a magia do espetáculo. O ator entrega seu corpo às diversas figuras que surgem ao longo da narrativa, sem nenhum artifício espetacular ou linha de interpretação aparente. Talvez uma proposta Brechtiana, talvez a magia dos imitadores comediantes, talvez a presença de um desejo simplório de mostrar essas pessoas, definissem a empreitada. A escolha mais acertada de toda a encenação talvez seja a de deixar Plinio no lugar libertador do contador de histórias. A presença de Stanislavski ou de Artaud pouco importaria para a construção desse espetáculo. O que toca o espectador, o que sacode a experiência cênica, é o simples fato de ver um fabuloso ator na plenitude do ato de contar a sua história de vida. É só isso.
Na Beira vem resgatar a simplicidade do fazer teatral. Vem mostrar que é apenas com um ator e uma boa história que se faz teatro. E que isso não desmerece em nenhum sentido o encenador, o iluminador, ou o figurinista; na verdade, enaltece essas pessoas no exercício da generosidade de deixar esse encontro entre ator e público fluir livremente, sem excessos e sem pesos. Na Beira é daqueles espetáculos que você quer que todo mundo veja, sua mãe, sua avó, seu vizinho, seus amigos do trabalho. Na Beira precisaria ficar 10 anos em cartaz e ainda assim seria insuficiente.