Crítica – Ecos | há estranheza e intimidade
Imagem – Ash Tanasiychuk
há estranheza e intimidade, em ecos.
é um silêncio, entre a escolha e a decisão.
para ecos,
d’ozzi
teoria do devaneio,
gosto de pensar que o eu, mesmo, não existe, propriamente dito. resignado, prostrado, acredito que nada, dado a finitude, exista – ainda que existamos todos. gosto ainda de pensar que é o eu, uma mandala de eu’s, como de eu’s menores, e autônomos, porém sem penduricalhos e com vozes persistentes e primitiva, feito bicho, mesmo. no centro dessa mandala, o self. não fosse os pequenos pigmentos da mandala irreconhecível , incapaz de ser definido e descrito, o self, a maior porção não-observável do eu, tampouco existiria. as influências dos pequenos eu’s envoltos na mandala, cuja função é nos deixar um tanto a ermo, um tanto arrogantes, um tanto perdidos e cotidianos. ecos é isso. um self maldito e imenso. mal capaz de caber, a não ser pela via do mesmíssimo. uma força que pulsa, sem vergonha, ecos não conhece a vergonha, nem a pressa que o mal tempo, ou o tempo’falso, propõe. é um prazer, e um encanto, escrever um texto’poema’nada, pra ecos, todo em letras minúsculas, meu melhor.
não existe porque uma farmácia que não existe mais desde a década de cinquenta e ainda pode imprimir, na alma, sentido, visto o retrato dela, só posso cultuar e me graduar no sagrado colégio da contemplação. sagrado pela vontade da força, jamais por eclesiastes. podem dizer que uma farmácia é produto da subjetividade humana, as paredes, os fármacos, o cheiro, mas haveremos de sentar, antes, no batente da porta do nada: a subjetividade humana, é, sobretudo, criatividade, ou mais íntimo ainda: deus, god, bábá, ou como quisermos – é a fonte do desejo ainda sendo o desejo o não’sentido. todas as coisas permanecem sendo feito a roupa de ecos, donde pode-se imprimir sentido. um manto que come os espaços, uma folha em branco para o obcecado por palavras.
duas verdades tenho a dizer quanto a este texto. uma é que ele falará de coisa alguma. a poesia não reduz-se a palavra, a regra. vai, vive, desamarra-te da mentira (verdade) de que, na existência existem quaisquer garantias. pequeno, vem aqui, isso, senta ao meu lado. olha-me o olho, deita tua cabeça d’ouro em meu peito sempre estupefato, sempre assustado. e chora. não te disseram, pequeno, que a vida acaba em jamais começar? talvez a linguagem, e linguagem é mais que um punhado de vaidades, seja poesia. portanto, estás dispensada/o da leitura do mesmo. não pode ser a poesia, nem o poema, um girassol desabrochado no jardim lateral que logun plantara, nem o apito do trem, nem a paixão do amigo pelo outro amigo, nem a leveza dos enamorados comendo um a carne do outro. carne que se renova. se me fosse dado a coragem para querer uma palavra, palavrinha mamãe, minha filhinha mais nova, escolheria, eu, a palavra ‘sempre’, e não é porque quereria, eu, viver para-sempre, mas está na graça daqueles que pensam poder fazer alguma coisa, e fazem. não vamos destruir o mundo por causa disso, vamos melhorá-lo. a outra verdade (mentira) é que nem a primeira verdade, nem a segunda verdade, nem mesmo esse texto inteiro, é passaporte ou ingresso, ou poderia ele ajudar em quaisquer que seja a cousa. para que, assim, fique outorgado que esse texto é uma tragédia emponderada, vos anúncio, agora, que o poeta acabou de chegar, vi quando ele entrou pela via lateral do hotel e perdeu-se névoa adentro, curisco. a fim de evitar o cortejo de toda a gente.
confessei para meu homem, um dos meus capatazes para o acaso de alguém querer dizer verdades sobre mim, que mal sabe que continuamos tão amigos quanto nada, e que perdeu-se de mim, e eu perdi-me dele, que assim como o corpo é cavalo do espírito, sou cavalo da poesia. cavalo do cão, embestaferizado, raivoso e absurdo. meu self é um cavalo levando o mundo que mina absurdos. babando o carpete, roendo as vigas, saltando de uma eira a outra, e vos falo, meninas e meninos de dias adultos, que eu mesmo, não acredito em nada. nada mesmo. nem no tempo do que come pó nem no tempo do que come ouro, e sobre isto tenho uma carta na manga, meu olho é torto, defeituoso. faz tempo que persigo a vida, e ecos, o espetáculo, continua lembrando-me disso, continua pondo mais uma conta no meu rosário. sou desafinado e tenho mania de limpeza. também sou poeta (aqui nessa,
instância do poema gargalho como quem é levado amarrado ao manicômio central), desses cuja métrica é assalto e arrogância, valha-me.
o que queres que te diga? que comece escrevendo esse texto assim “ecos é a trupe mais badalada das cidades centrais, luciana freire d’anunciação é formada em arte cênica pela universidade federal de pernambuco e pós’doctora em dança indecifrável e esquisita e pá e blá blá blá. eu? não! isso todo mundo já sabe, dalguma maneira, ainda que não saiba que sabe.
um filósofo da psicologia contemporânea, me contou, assim, tão compenetrado em sua essência profissional, que deixara, e só posso acreditar que fora um ato involuntário, escapar que o nadismo é perigoso. ecos fala do nada pra o nada, e existe bailando e com responsabilidade existencial como poucos, com recursos verdadeiros ou financiados, consegue. quis saber o que ele tinha, ou mesmo eu, que não existo e ainda assim tento escrever o texto que morre de parto mais não nasce. engenharia? jardinagem? filosofia? tu não tens nada além do prometido esquecimento. hoje andas, tomas cerveja, roubas garrafas de vinho, ontem encontrastes o amigo e o quisestes nu em teus braços, ainda hoje comestes uma amora, fumastes um cigarro com teu amigo da primeira infância, sorristes e mergulhasses, um dia, serás tanta coisa que não serás nada. morto e esquecido. se ecos não fala disso, não serei eu quem saberei o que fala.
quero sim, deixar dito que ecos é sofisticado porque fala da existência que é mútua e mutante. era pra ter estreado numa segunda’feira pela manhã, em praça qualquer.
há um desgosto tão desgraçado comendo meu peito que , por maldição e graça e benção, no mesmo instante em que consigo atuar, consigo experimentar a existência, assim, ‘não-sei’ tanto sobre quaisquer coisas: um alfinete espetando o paletó, uma cadeira de balanço donde serafina separava pedrinhas, uma criança aos prantos dentro de um supermercado, ou eu digo que sou, e minto, ou agarrado a mentira, navego sobre as incertezas de ser entidade dum corpo que um dia os retratos se apagarão comidos pelo mofo como o mofo que deu debaixo das gavetas do armário amarelo ouro do amor, e expulsamos com vinagre umedecido num pano alvo que edvaldo ensinara-me na tarde, duas horas e vinte e três minutos antes do mesmo, ao tentar apanhar o ônibus de piedade ser atropelado por um burrinho que apareceu enlouquecido pela urbanidade daquele lugar. sentei-me no meio fio por volta das dezesseis e quinze e chorei poesia. desconsolado.
eu poderia dizer, a convite d’eu mesmo que luciana feire d’anunciação fora bailarina e maestra de si, e cresceu e nos roubou a esperança e nos devolve quando nasce a gente sem saber o que fazer de si próprio, eu poderia dizer, assim, vulgarmente. não consigo casar com quase nada. casar. porque namoro é coisa de verdade, ainda que eu evite a palavra verdade, as palavras. parece que só nos resta abrir a boca e fechar, com uma alma que arde no meio, um coração de veias entupidas, argh, uma vontade de gritar. mas ecos, não. ecos lembra a roupa de gala da rainha, a imaculada, a vil e compadecedora. a roupa que engole a palavra. o momento da convulsão.
privilégios.
ecos fala da existência com tanta delicadeza e força que, em algum momento, se confundirá com quaisquer objetos a bailar na ventania, indo ao sul, perdido e buril, infesto. isso lembra-me os que temem ser a si mesmo. assim, explico: jorge queria tanto ser frondoso de muitas miudinhas flores e coloridas, que transformou-se num violento arbusto espinhoso de espinhos longos e afiados. era de gênero x e sentia-se y, mas não questionava. matava-se para não ser o que era. aniquilava-se, cortava-se, anulava-se. é verdade que jorge não parecia ter self, que era uma mandala sem meio, ou centro. no que isso importa? bem, isso importa quanto a mentira que queiras contar, na vida: como ter um automóvel vermelho, um filho sadio, uma jardineira. não sei ainda para que serve a vida. sou um pobre atormentado estado de não-ser. não houve um único dia, nessa existência, em que fui quaisquer cousas, qualquer.
s’eu usasse a palavra iluminado, inquietante, acho que encontrei a palavra ‘sublime’, belo, assustador, estaria, ainda, enclausurado, amordaçado, sinto que, a medida que encontro a palavra, único verbo, para vos falar, aos senhores (filhas e filhos das mulheres e dos homens) sobre o experimento, mesa posta, que é ecos, a medida que meu samburá enche, está vazio: isto é ecos.
quando d’anunciação lembra de festejar a intenção do espetáculo, como a vida de noventa e três anos ou cinco anos e seis meses ou trinta e um, eis que a cortina fecha. a vida nem sempre continua, meu bem. é preciso, sobretudo, sorrir, como quem mente em liberdade, fingindo a não’condicional.
exausto desse texto, e dessa tentativa de construir uma vaidade que me valha a pena a palavra, encerro, aqui, meu falatório. eu, feito de ar e nada, suave como a lâmina que a mão da morte empunha, eu, aquele que auto’nomeou-se o grande, desejo que ecos dance com os que sofrem e os que foram exilados, sobretudo. eu mesmo sou um. desejo que ecos torne-se íntima de desatadora dos nós, minha senhora. que seja colo para os que caíram na mentira de que precisam ser de verdade e não conseguem mais prosseguir, tudo bem que não queiram, mas devem não querer por mentira própria, coisa autêntica, não da verdade (uma mentira) que lhe quiseram, por perversidade, contar.
vida longa ao texto e ao espetáculo impossível de ser concebido, roga por nós desatadora de nós (ala laica – desatadora de nós é uma grande amiga, como jerusa), e nos abandona a nossa própria sorte, só assim, poderemos crescer para o que não se cresce nem se pode acrescentar um palmo. digo, do mundo de dentro. rogai por nós ‘eu mesmo’.
(quando procuraram o poeta, a fim de beijar-lhe a testa, dar-lhe um copo d’agua ou lhe cortarem as unhas, ele se fora antes do céu anuviar. deixou este texto, sobre a mesa de madeira crua cujo endereço só jazia a palavra, estava escrito: ‘entregar a ‘ecos’).