Crítica – Jogo da Guerra (Interior) | O jogo da (falsa) ordem

Imagem – Morgana Narjara
Por Lorenna Rocha
Licencianda em História (UFPE) e Crítica Teatral
Faz fila. Sobe as escadas. Senta. Abre a bolsa. Celular, escova, pasta, caderno. Pega o celular. Cobre a câmera. Põe sob a mesa. O que trouxe você até aqui hoje? Levanta. Olha a janela. Joga as moedas. Escreve. Olha as imagens das câmeras externas. Privilégios. Segurança. Come. Senta. Levanta. Abaixa. Segurança. Fecha os olhos. Abre os olhos. Modifica a imagem. Assina. Olha esse registro. Qual o propósito que você tem? Abaixa. Pela nossa segurança. Propósito. Desce.
Ação.
19 de setembro de 2019. 16h. As ruas do centro da cidade com seu comércio em crise presenciaram um movimento incomum na Rua da Imperatriz. Não é corriqueiro aos transeuntes um aglomerado de pessoas daquele, reunido, conversando entre si, àquela hora… Exceto em casos de violência, claro. Recife. As pessoas envolvidas na programação do Usina Teatral (saiba mais AQUI) deste ano sabiam que algo estava por vir. Íamos assistir a uma intervenção urbana. Três grupos seriam divididos. Duas áreas externas e uma interna. Um jogo iria começar. Onde estavam as regras?
Optei por ficar na parte interior, no Sindicato dos Comerciários. O espaço foi ocupado para a realização de Jogo da Guerra, do ERRO Grupo de Teatro (SC) (conheça mais sobre o grupo AQUI). Apenas doze pessoas iriam subir no local. Enquanto aguardávamos na rua, um homem, o ator Luiz Henrique Cudo, apareceu. Ele caminhava entre todos(as) os(as) presentes e perguntava gentilmente se estávamos inscritos no evento do Sesc, nos dirigindo a uma fila. É para (estabelecer) ordem e nossa segurança, tudo bem? Ao ver os outros corpos sendo delicadamente tocados abaixo da cintura, como se estivéssemos armados (ou munidos de algum outro objeto), compreendi que estávamos sendo revistados. Posteriormente, fomos direcionados ao primeiro andar, onde o jogo interior iria acontecer. Uma presença masculina, branca, controlada e segura de si ditava nossos movimentos através das palavras.
Uma grande mesa. Doze cadeiras. Doze canetas. Pedaços de fitas brancas cortadas. Alguns papéis, um grande espelho posicionado diagonalmente para que todos pudessem se ver e olhar os computadores que estavam posicionados atrás de metade do grupo. Um outro homem, o ator Rodrigo Ramos, estava dedilhando algo no violão e era quase como parte da composição desse lugar. Após nos acomodarmos, cada pergunta feita por Luiz sinalizava que seríamos co-criadores daquela ação. A cada resposta da audiência, a dramaturgia se desenhava em tempo real. Friccionando as barreiras entre o real e o ficcional, Jogo da Guerra criava sua heterotopia: regulados pela figura de Luiz, a criação de um espaço organizado e seguro parecia ser o grande objetivo do jogo.
Enquanto os grupos externos deixavam seus rastros em imagens publicadas na internet por eles mesmos ou com gritos que nos atraíam até a janela do local, a presença de dois computadores no espaço nos dava a sensação de que podíamos acompanhar tudo o que estava acontecendo na rua. Se lá dentro nosso ordenamento era orquestrado por Luiz, a distância ocasionada pela arquitetura que nos separava dos demais grupos produzia outro efeito: identificar o nosso oposto, o caos nas ruas da cidade.

Jogo da Guerra, do ERRO Grupo de Teatro (SC), em Recife | Foto – Morgana Narjara | #4ParedeParaTodos #PraTodoMundoVer – A foto se passa na rua, de dia. Uma mulher está no primeiro plano da foto, da cintura para cima, vestindo camisa preta e com a mão, o antebraço e o rosto com marcas de tinta preta. Portando uma bolsa no colo, a mulher segura um smartphone, apontando-o para cima para tirar uma selfie. Atrás da mulher, desfocado, aparece um grupo de cerca de 30 pessoas, posando para a fotografia.
A distinção binária entre dentro-fora, limpo-sujo, organizado-desorganizado, caos-ordenação criava a situação ilusória de um ambiente perfeitamente seguro. Apesar das distâncias, esse uso do Facebook dentro do jogo, conduz a uma nova camada de participação entre os espect-atores[1]: devendo decidir coletivamente como reagir às fotos e elaborar comentários, além de monitorarmos os episódios, possuíamos a sensação de que era possível intervir no que estava acontecendo lá fora. Em vigilância constante, dentro de um mecanismo aparentemente eficiente, a hierarquia simbólica se formava, fazendo de nós privilegiados.
Em uma das partes do jogo, Luiz nos conduziu até a janela para observarmos a paisagem em nossa frente. Ruas pouco movimentadas, sacadas degradadas de casarões antigos. Isto posto, fomos convidados(as) a reconfigurar aquilo que estava diante de nós. Imaginamos outros modelos de cidade. Nossas mãos, diante da janela, remexiam aquilo que estava posto. As lógicas de um poder que viabiliza a segregação, a violência e o medo estavam, aparentemente, sendo modificadas.
Se esse tipo de jogo nos permite alterar a imagem do que está posto (não só no jogo, mas na vida), ao mesmo tempo pouco nos move para encontrar (ou evocar) um propósito nas ruas. Reivindicar um outro lugar, ou outros modelos de cidade, foi feito sob controle. Sem enfrentamento. Diferente daquilo que parecia estar ocorrendo nas ruas, com os outros participantes. O núcleo interno, dessa forma, funciona como um delimitador de nossas ações, mesmo que em determinado momento Luiz nos afirme que temos livre trânsito em todos os grupos da atividade. A identificação da falsa ideia de liberdade não nos chegava, enquanto celebrávamos nossa segurança.

Jogo da Guerra, do ERRO Grupo de Teatro (SC), em Recife | Foto – Morgana Narjara | #4ParedeParaTodos #PraTodoMundoVer – Foto colorida. No primeiro plano, há uma mesa do lado esquerdo da foto, de lado, com computadores. No segundo plano, um grupo de 12 pessoas está posicionado em frente a uma janela de vidro que toma conta de toda a extensão da parede, observando a rua.
Em nossa cápsula, no entanto, um coquetel molotov desmanchado é trazido até nós por um outro homem. O ator Dilmo Nunes tinha sido solicitado por Luiz para se infiltrar nas manifestações e enviar imagens capturadas em tempo real, sem o nosso conhecimento. Neste instante, a ficção se delineia de forma mais explícita, pois o ator está evidentemente interpretando um personagem. Entretanto, a chegada de um novo componente no jogo nos atravessa, deixando isso em segundo plano, afinal o objeto em suas mãos materializa o perigo de nossa ordem. Enquanto nos desestabilizávamos, pelo medo de um possível ataque, que para nós não parecia ficcional, por estarmos imersos no jogo, a ilusão do nosso mundo disciplinar (e ordeiro) mostrou suas falências. Não é possível estar seguro em lugar nenhum, mesmo que todas as condições sejam criadas para nos dizer o contrário.
Submersos na proposta do jogo, em seus distanciamentos e assimetrias, acreditamos na ordem a qual nos foi vendida. Levamos em conta essa ideia, assim como cremos todos os dias, por exemplo, na manutenção da ordem proposta pelo Estado, que, por fim, escolhe a quem garantir tal segurança. A partir do modo como opera suas ações, Jogo da Guerra parece traçar um diálogo com as noções de teatro imersivo[2], que se fundamenta em uma experiência de imprevisibilidade a qual depende da sua audiência para construir seus caminhos. Nesse contexto, o jogo parece se estruturar sob um falso objetivo: criar um ambiente controlado, seguro, mas que se move para decretar seu próprio fim. Simbolicamente, a presença do coquetel molotov no jogo reitera a noção de caos que nós queríamos nos distanciar. Estrategicamente, me parece que o final da partida foi idealizado para apontar nossos próprios fracassos. Estamos em guerra.
Referências
BELO, Inês Carvalho dos Santos. O teatro imersivo. In: Teatro imersivo: públicos e práticas culturais. Instituto Universitário de Lisboa. Departamento de História. Mestrado em Empreendedorismo e Estudos da Cultura. p. 12-18. Setembro, 2016. (ACESSE AQUI)
BERNAT, Roger. GUIMARÃES, Julia. Cotidiano e imersão no teatro de Roger Bernat: a linguagem cênica reinventada. ARJ, Brasil, v. 3, n.1, p. 182-193, jan/jun. 2016. (ACESSE AQUI)
FERREIRA, Sarah. Transitividade, errância e democratização da cena no ERRO Grupo. In: PERSISTÊNCIA. Org. Pedro Bennaton e Luana Raiter. p. 27-42. Ilha do Desterro, ERRO Grupo de Teatro, 2016. (ACESSE AQUI)
ROSSETE JUNIOR, Everton Nazareth. A cidade como produto espetacular. In: O Teatro agenciando ocupações urbanas: A atuação do ERRO Grupo em Florianópolis. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade. Santa Catarina. p. 34-39. Abril, 2015. (ACESSE AQUI)
Notas de Rodapé
[1]A noção de ‘espect-ator’ é desenvolvida por Augusto Boal (1931-2009) e diz respeito à transformação dos(as) espectadores(as) em participantes ativos na cena, ou seja, atores e atrizes, promovendo a liberdade de ação e autonomia. O autor acreditava que a transformação no palco seria um ensaio para a mudança na vida/sociedade/opressão. Ver mais em Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas.
[2] A proposta do Teatro de Imersão pode ser compreendida como uma arte performativa onde não há barreiras entre atores e públicos, integrando estes últimos ao cenário e interagindo com o elenco da peça. Explorando o espaço e interagindo com os atores e atriz, a audiência participa ativamente da criação da narrativa, passando a ser co-autores e co-criadores do processo de storytelling. Ver mais em: Teatro imersivo: públicos e práticas culturais.