Crítica – Salmo 91 | ‘Salmo 91’ e o percurso de um diretor
Imagens – Wilson Lima
Por Bruno Siqueira
Doutor em Letras (UFPE) e Professor Adjunto do curso de Licenciatura em Teatro (UFPE)
Antônio Rodrigues é desses artistas que estimulam pela iniciativa, força de vontade e perseverança no fazer teatral em Recife. Vindo de Garanhuns e começando a participar do teatro profissional recifense em 1998, tornou-se, em 2001, um dos fundadores da Cênicas Cia de Repertório. De lá para cá, produziu e atuou em doze espetáculos, estabeleceu a sede da companhia no bairro do Recife e vem oferecendo cursos de iniciação teatral no Espaço Cênicas, desde 2011. Além disso, tem promovido leituras dramatizadas de textos escritos por autores jovens ou ainda pouco conhecidos. Vê-se se tratar de uma pessoa que faz do teatro uma das razões da existência.
Dos espetáculos montados pela Cênicas Cia de Repertório, o que provocou em mim maior impacto foi As Criadas, de Jean Genet, com encenação de Marcondes Lima e Kleber Lourenço, no ano de 2006. Mas percebo que, dos que foram dirigidos pelo próprio Antônio Rodrigues, Salmo 91 está sendo o que marca uma nova fase na vida do grupo e do diretor. Explico-me. Nesse espetáculo, Antônio dá mostras de um maior amadurecimento enquanto encenador, de uma maior sensibilidade no uso do espaço e de uma maior habilidade no agenciamento de signos que compõem a estética da cena.
A dramaturgia é assinada por Dib Carneiro Neto, que adaptou para o teatro o best seller de Dráuzio Varella, Estação Carandiru. Constituída de monólogos, a peça alinhava histórias contadas por dez detentos da extinta penitenciária de Carandiru, cenário onde ocorreu a chacina de 111 presos pelas forças armadas paulistanas, segundo dados oficiais. Dib Carneiro Neto potencializa em seu texto o drama dessas personagens, já latente na obra de Varela. Os detentos falam da miséria de suas próprias vidas, revelando detalhes do cotidiano no maior edifício carcerário brasileiro à época.
Em que pese a aclamada recepção do público, o espetáculo de Antônio Rodrigues me suscitou algumas questões que trago à luz a fim de provocar o artista, uma vez que desejo do grupo o crescimento e uma maior expansão. Em primeiro lugar, a mim incomodou o traço melodramático que o encenador conferiu à cena, intensificado, sobretudo, pela sonoplastia e pelo desenho de luz. Reconhecemos que o melodrama é um dos componentes marcantes de nossa cultura, mas sabemos também que a leitura melodramática da realidade tende a simplificar questões de maior complexidade. Enquanto entretenimento, por um lado, o melodrama é um dos recursos populares de que dispomos na criação e ampliação de espaços do imaginário. Por outro lado, fornece balizas para que o espectador encontre, por meio das emoções em abundância, “um guia no plano da moralidade, um mundo que ainda tem espaço para reconciliações”, nas palavras de Ismail Xavier. Ou seja, ainda que esteja entranhada em nosso “sangue latino”, a perspectiva melodramática não dá conta da complexidade de algumas discussões, como as contradições humanas e nosso sistema penitenciário, por exemplo. Não me pareceu que, em Salmo 91, o melodrama tivesse sido proposital na criação do conceito do espetáculo. Pelo contrário, compreendo que ele se tornou sobressalente no propósito do encenador em fazer com que o público se identificasse emocionalmente com aquela realidade representada em cena. Identificação pelo transbordamento.
Em segundo lugar – e ainda relacionada ao primeiro –, vem a dramaturgia atoral. Concordo muitíssimo com Moisés Neto quando diz que o Salmo 91 foi “interpretado com sangue e garra por uma gente que tem no corpo e na alma vontade de gritar com dor pelo AMOR”. De fato, há nos atores um empenho em fazer o seu melhor. Todos estão muito envolvidos com o trabalho, demonstrando engajamento através da arte. Porém, o resultado me fez lembrar de uma consideração feita por Eugenio Barba em seu livro Além das Ilhas Flutuantes, a qual transcrevo aqui: “Todos vimos espetáculos nos quais os atores atuam em um turbilhão físico incontrolado – o que chamam de espontaneidade – com gritos angustiantes e movimentos compulsivos. No momento em que tentam expressar seu ser total, desfazem-se num nada informe. Embora as aspirações de tal teatro sejam respeitáveis, esta forma de comunicação não traz à luz nenhuma nova consciência articulada de nós mesmos. Tudo se desenvolve em um caos biológico, na impotência”. No Salmo 91, há muita energia informe, desperdiçada em gritos e num “turbilhão físico incontrolado”. Se por uma lado esse trabalho de ator contribui para uma estética melodramática, por outro nos distancia da complexidade das personagens pela concessão feita ao sentimentalismo epidérmico.
As questões que levanto, tanto uma quanto outra, me levaram a crer que Salmo 91 findou por apostar mais na beleza superficial, nos efeitos estéticos (músicas bonitas, luz bonita, expressões bonitas de dor e desespero, cada qual separadamente), do que nas camadas mais sutis do drama e, por extensão, do trabalho dos atores, o que conferiria à encenação uma profundidade mais orgânica. Antônio Rodrigues e a Cênicas Cia de Repertório estão construindo seu caminho, numa busca incessante. Como eu sei que o artista não vai se acomodar ao sucesso de público que vem tendo seu Salmo 91, desejo ver o amadurecimento do espetáculo e as novas conquistas que a companhia virá a ter em seu futuro promissor.