Crítica – Apenas o fim do mundo | Um Magiluth europeizado

Imagem – Morgana Narjara
Por Bruno Siqueira
Professor da Licenciatura de Teatro (UFPE)
é preciso continuar, não posso continuar, portanto eu vou continuar, é preciso dizer palavras enquanto elas existem. (Beckett, L’Inommable)
Começo este texto citando Beckett, que foi uma das inspirações da dramaturgia de Jean-Luc Lagarce (1957-1995), escritor, encenador e ator francês do chamado teatro contemporâneo. Assim como em Beckett, no teatro de Lagarce encontramos um alto investimento poético com a língua (francesa), com as palavras, com a dificuldade de dizê-las, com a luta permanente da voz e do sentido. Salta aos olhos e ouvidos a forma titubeante da fala das suas personagens, a repetição como recurso estilístico e dramatúrgico, o que torna os textos em sofisticadas partituras, plenas de lirismo.
Traduzir seus textos requer, além do conhecimento da língua francesa, uma sensibilidade para captar e reproduzir a musicalidade da forma e os diversos matizes contidos no significado das palavras. No Brasil, Giovana Soar traduziu a peça Juste la fin du monde (Apenas o fim do mundo), um trabalho de tradução digno de elogio, a qual foi publicada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo em 2006. Esse mesmo texto foi também usado para a montagem que a própria Giovana Soar e Luiz Fernando Marques (Lubi) dirigiram juntamente aos atores do grupo Magiluth.
Tive a oportunidade de assistir três vezes ao espetáculo, uma no SESC Paulista (SP), onde houve sua estreia; e duas no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (MAMAM, PE), o que me rendeu experiências distintas do mesmo trabalho. Antes de mais nada, para quem acompanha a experiência do Magiluth desde os primórdios, percebe-se que esse consiste num projeto bastante diferente em comparação aos que o grupo já vinha trabalhando. Sempre com uma investigação acerca da performatividade da cena teatral, os Magiluth, desta vez, estão encenando um texto clássico francês – ainda que contemporâneo – e com direção não mais do grupo, mas de artistas do sul e do sudeste, respectivamente.
O texto de Lagarce dialoga com a parábola bíblica do filho pródigo. Luiz, o filho que deixara cedo a casa dos pais para construir sua vida profissional e viver sua vida existencial, volta anos mais tarde para rever seus familiares e anunciar que está prestes a morrer. Ao contrário da narrativa bíblica, em que o filho retorna à casa familiar, celebrando a vida que vence a morte, em Apenas o fim do mundo não há celebração alguma. O retorno de Luiz à casa de seus pais representou o anúncio do seu próprio fim, dimensão apocalíptica já prenunciada no título da peça. Além disso, a família do Luiz, agora sem a presença do pai, o recebe com um misto de surpresa, amor, ressentimento, estranhamento.
O texto expressa um caldeirão de sentimentos e emoções, ditos e não ditos, que estão regulados pela precisão e pelo rigor da construção formal da linguagem. Apesar de muitos críticos franceses terem estranhado, em princípio, as peças do autor, elas revelam muito da dramaturgia francesa, em geral, fortemente marcada pela expressão poética. Do ponto de vista estilístico, chego a comparar o teatro de Lagarce ao de Racine, um dos totens da teatro francês, uma vez que percebo em ambos a tensão entre sentimentos avassaladores e um trabalho poético que contém o transbordamento desses mesmos sentimentos. Um vulcão de superfície plácida e florida, mas prestes a explodir.

Pedro Wagner em ‘Apenas o fim do mundo’ | Foto – Morgana Narjara | #4ParedeParaTodos #PraTodoMundoVer – Imagem horizontal, focalizada no ator em cena que está dentro de um elevador. O local tem uma coloração azulada. Seu rosto está franzido e de olhos fechados, enquanto está em ação. Ele está vestido de camisa de botão e um casaco escuro por cima.
A encenação de Lubi e Giovana Soar propõe a exploração de espaços não convencionais, a fim de criar nos atores e no público uma maior imersão na atmosfera de intimidade do lar. Tanto no 13º. andar do SESC Paulista, quanto no MAMAM, o público entrava num espaço sem cadeiras e sem palco improvisado. A peça é itinerante e nós somos convidados a percorrer os desvãos dos respectivos espaços, assistindo às cenas como num reality show. Em si, esse recurso não traz novidade alguma. Porém, a criatividade e a habilidade dos diretores em fazer a decupagem das cenas e em conduzir os deslocamentos são dignos de elogio. A parceria entre ambos mostrou-se deveras produtiva.
Com relação aos atores, o texto de Lagarce representou um grande desafio. Para o autor, toda a dramaticidade de seus textos está na língua, na palavra, no dito, no como dizer e no não dizer. É, porém, uma língua teatralizada, que vive pelo corpo do ator e se dirige ao corpo do espectador. Trata-se de uma dramaturgia da palavra, cuja precisão disciplinar específica está longe da realidade não somente do grupo Magiluth, mas do teatro latino-americano.
Apenas o fim do mundo está inserido numa geocultura e numa geopolítica francesa, europeia, ocidental. Trazer esse texto para o contexto teatral brasileiro exige adaptações; ou, então, corre-se o risco de “vestir o próprio corpo com roupas estrangeiras”, o que pode gerar estranhamento e pouco convencimento. Pedro Wagner (Louis), Bruno Parmera (Suzanne), Mario Sergio Cabral (Antonio), Giordano Castro (Catarina), Erivaldo Oliveira (a mãe) e Lucas Torres (contrarregra e baterista) encararam o desafio, seus riscos e suas consequências.
Recorrer à dramaturgia francesa implica sustentar os valores que subjazem ao teatro francês e europeu: um treinamento técnico que exige do ator uma boa locução dos textos liricamente investidos, tanto nas tragédias, como nas comédias e nos dramas. Ou seja, uma locução que seja compreensível, limpa, afinada, com os sentimentos correspondentes. Mesmo que o teatro francês moderno e contemporâneo tenha casos que procuram se distanciar desses parâmetros estéticos, a verdade é que esse teatro e o dos países da Europa, sobretudo a ocidental, ainda supervalorizam o bem falar e a locução afinada de seus atores e atrizes.
Com isso, quero dizer que, apesar de terem emocionado a plateia dos três dias em que assisti à peça, os atores do Magiluth oscilaram com relação à afinação e ao rigor técnico esperado de uma interpretação do texto francês, já que o trabalho optou por fazer os atores viverem emocionalmente as personagens da peça. Destaco o trabalho de Erivaldo Oliveira e de Bruno Parmera, que conseguiram fazer com que a língua do teatro de Lagarce, a meu ver, ganhasse vida e potência. Ambos conseguiram manter uma afinação na construção de suas personagens. Os demais atores estão em alguns momentos afinados e em outros, nem tanto.
A despeito disso, reconheço nesse trabalho do grupo pontos bastante positivos. Antes de mais nada, a ousadia e a determinação de seus atores, somadas ao talento e seriedade, foi algo que sempre me fez admirá-los. Em segundo lugar, optar por trabalhar com um texto clássico francês, distante das investigações estéticas vividas anteriormente pelo grupo, é um desafio legítimo, pelo qual eu acredito valer a pena se arriscar. Tenho certeza de que esse trabalho contribuiu para o amadurecimento dos Magiluth, cuja trajetória tem revelado atores que parecem saber o que querem: explorar as possibilidades e potencialidades do teatro.