Crítica – Sábado Descontraído | O que acontece numa sociedade não ocidental?
Imagem – Jose Caldeira
Por Bruno Siqueira
Professor da Licenciatura de Teatro (UFPE)
Neste sábado, pude assistir ao espetáculo Sábado Descontraído (Samedi Détante) dentro da programação da MIT-SP. A concepção, coreografia e direção eram assinadas pela ruandesa Dorothée Munyaneza.
Tratou-se de um dos espetáculos mais concorridos da mostra paulistana. Tanto que somente eu recebi o convite, cabendo à minha parceira crítica, Lorenna Rocha, chegar duas horas e vinte minutos antes de começar o espetáculo para ser a primeira da fila de espera, a fim de ocupar o lugar de quem poderia desistir de ir ao teatro.
O trabalho foi apresentado no SESC Paulista, no 13º andar. Quem conhece o espaço, sabe que o corredor é minúsculo, ladeado por quatro elevadores, dois de cada lado. Estive com Lorenna todo o tempo na fila de espera. Aos poucos, foram chegando pessoas que também tinham interesse em assistir ao espetáculo, mas não tinham conseguido comprar o ingresso antes.
A Folha de S. Paulo, em matéria sobre a peça, foi enfática: INGRESSOS ESGOTADOS. Todavia, os espectadores desejosos não se deixaram intimidar, foram chegando a conta-gotas. Perto do início da peça, aqueles que estavam com ingresso e os que se encontravam na fila de espera das desistências somavam-se mais de 100 espectadores, num corredor de aproximadamente 4m x 1m. A sensação era de claustrofobia, como se estivéssemos todos num bunker.
Entramos na sala. A sensação de claustrofobia não desapareceu; antes, foi piorando até o desfecho da peça. Penumbra. Luz branca sobre a plateia. No espaço cênico, uma mesa, sobre a qual se acoplava um microfone e repousava um facão. Ao lado, um rádio grande e velho, com antena levantada. Ao lado direito da plateia, um microfone sobre um pedestal, seguido de uma mesa de som. Ao fundo, na lateral direita, um praticável; na lateral esquerda, outro microfone sobre um pedestal.
Quando a peça começa, a luz da plateia se apaga e acende um foco sobre o microfone. O operador de som bate os dois facões um no outro diversas vezes, fazendo o tilintar ecoar e sugerir lutas corpo a corpo. Sons de facão em madeira, evocando facões cravados em crânio. Nisso, uma belíssima voz vinda pela lateral direita da plateia invade a cena numa música pungente.
É a Dorothée Munyaneza que surge num vestido azul, pueril, dá a volta pela mesa de som e sobe à mesa central. Finda a canção, ela começa a narrar suas memórias de criança, impregnadas em seu corpo, como profundas cicatrizes. A voz sai num sopro, com cadência, fazendo contrastar a harmonia vocal com os sentidos que a narrativa construía a respeito de um dos maiores genocídios da história em curto espaço de tempo.
A luz azul e vermelha contribui para imprimir um caráter expressionista à cena, aprofundando a sensação de guerra, de pessoas oprimidas, assassinadas, escondidas em bunkers, decaptadas, estupradas. Sim, um dos maiores casos de estupro coletivos de mulheres e homens em tão pouco tempo. Uma terceira pessoa compõe a cena, a atriz Nadia Beugré, que interage visceralmente com Dorothée, seja mostrando personagens, seja compondo desenhos e movimentos expressionistas.
O teatro é vocalizado, seguindo a tradição de muitos países africanos pela oralitura. Muito já se foi escrito sobre o genocídio em Ruanda, no ano de 1994. Mas esses três corpos em cena constroem uma narrativa cênica oral, como máquinas de subjetividades. Esses corpos estão atravessados pelas memórias trágicas desse genocídio e constituem os lugares de fala genuínos. São corpos-arquivos.
Há uma série de documentos concretos plasmados em suas memórias e subjetividades. As forças de sentidos que são disparadas dessas máquinas de subjetividade, como fios tênues e delicados, enovelam e envolvem afetivamente nossos corpos de espectadores, ora provocando empatia, ora nos afetando a ponto de provocar náusea e ânsia de vômito, ora extraindo lágrimas.
Sabe-se que esse genocídio foi resultado de uma guerra étnica entre os povos hutus e tutsis, organizado por membros da elite política principal dos hutus, que assassinaram uma média de 800.000 pessoas de grupos étnicos tutsi, twa e de hutus moderados. O que poucos ainda sabem é que esses conflitos foram estimulados pelas potências imperialistas europeias para maior controle sobre os povos e sobre a extração de riquezas.
No caso de Ruanda, a Bélgica contribuiu muito para fomentar o ódio entre os grupos étnicos envolvidos. Em seu livro Os Condenados da Terra, de 1960, Frantz Fanon, um influente pensador martinicano sobre os temas da negritude, da descolonização e da psicopatologia da colonização, já denunciava essa política perversa dos países europeus imperialistas, que estimulavam a guerra entre as etnias colonizadas, para fins de maior controle político e econômico. Essa prática permanece até hoje, e o genocídio de 1994, em Ruanda, foi efeito dessa política.
Para se ter uma ideia, apurou-se que o genocídio foi financiado, pelo menos parcialmente, por programas internacionais advindos do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI). As armas vinham especialmente de nações ocidentais, como a França. E, apesar do massacre ter chocado uma parte considerável do mundo, nações ocidentais como Bélgica, França, Estados Unidos, dentre outras, ignoraram friamente o genocídio.
O impactante trabalho de Dorothée Munyaneza nos chama atenção para alguns tantos temas graves que nos afetam. Primeiramente, que o capitalismo imperialista foi e continua sendo devastador para os países economicamente subalternos. Em segundo lugar, que esse mesmo capitalismo engendra uma necropolítica voltada para o devir negro do mundo – para nos valermos de terminologias adotadas pelo filósofo camaronês Achille Mbembe – que torna esses corpos descartáveis, elimináveis.
Por fim, nos faz pensar que, enquanto um atentado terrorista nos Estados Unidos, como o que ocorreu com as torres do World Trade Center, choca o mundo ocidental e é ritualisticamente lembrado, ano após ano, por meio de documentários que registram a memória dos sobreviventes, um genocídio de 800.000 pessoas e o estupro de 500.000 mulheres e homens, em apenas três meses, num país africano, pouco ou nada é lembrado, porque pouco ou nada significa para o mundo ocidental capitalista.
A pergunta que assoma ao final da peça, quase que irônica, é: o que você estava fazendo no ano de 1994?
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Todos saíram do teatro em silêncio.